segunda-feira, setembro 09, 2024


As estações já não aguentam qualquer
efeito de composição, nenhum vaso
contém seja o que for, não se conhece já 
ninguém pelas coisas que diz,
talvez tu que ainda foste uma mulher
quando nenhum de nós presumia saber
o que isso significa, a insolência
a candura, os sinais distribuídos pelos dias
e sobre a pele, trazíamos e levávamos coisas
do museu das nossas memórias
para fazer sentido do que ia sucedendo,
andávamos por ali entre as estátuas
de feições corroídas e das quais podíamos 
colher nos dedos a saliva dos séculos,
tinhas a tua pequena e confiante voz
de quem canta entre o quarto, o chuveiro,
o corredor, essa existência nua,
tinhas o teu poço as rezas oferecidas
as conversas ao telefone a más horas
as acusações dirigidas a deuses de nada,
a tua preocupação em fechar a torneira 
do gás na cozinha, como se imaginasses
que a morte pudesse visitar-te
por um descuido desses, cuidados inúteis 
que te tornam compreensiva, próxima até 
daquela mítica letargia dos rapazes,
também a mim a única moral
que me importa é o tempo, ter bem claro
a todo o momento que já tudo aconteceu
e que só resta escolher o ângulo, como as aves 
que emigram de uma terra para outra,
porque o elemento em que se movem
é o mesmo que respiram, por isso largam
em bando, não ficam para assistir
à desolação, tornam-se um primeiro sinal,
e eu gostava de falar o que elas falam,
uma linguagem que fosse em si mesma
um alimento, um presságio, sons vivos
que com a sua mera propagação 
já nos dizem se o ar se tornou amargo,
ter um nome em si mesmo difícil
como um gole que lhes encha a boca
e os obrigue a cuspi-lo, com um gosto
a maldição ou ao menos a veneno.


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