segunda-feira, setembro 16, 2024


Com isto nunca quis gravar porra nenhuma,
mas mexer com os materiais da invenção,
batia as letras como quem pega e compara
os tipos, monta cada frase e passa tinta
num ritual para vir esperar algum ritmo
que se impusesse como uma debandada
uma ordem fabulosa erguendo nuvens de pó,
mas cedo dei com os notários os enredos
memoriosos relativos à posse, aos títulos
e percebi como por um receio qualquer
quiseram tornar as lendas imperecíveis
servindo-se da tinta, uns ditando outros
transcrevendo, fazendo cópias truncando
não tanto o sentido como a sonoridade
e às tantas os astros ficaram mudos,
deixando de exercer a sua rigorosa fluência, 
o ritmo sofreu, e o ímpeto, claro, em breve
as imagens achavam-se desencontradas,
os sons vagavam incapazes de se reunir
às coisas, os nomes pareciam cascas,
restava perder-se no silêncio levando só 
um texto para se misturar a ele, sangue
com tinta, reescrevê-lo, rasgar as folhas
meter os bocados na boca e recuperar
enfim tudo sem vontade de estragar nada,
tornar-se analfabeto enfim sabendo-o
de cor, e perder a relação entre os sons
e os signos, mas murmurá-lo para se
adormecer, do mesmo modo como a casa
responde ao vento, e a esse assédio senil,
e se a tempestade aqui é leitura suficiente 
o candeeiro recita de memória 
aquilo que nos foi dito pelos mais velhos,
e eu lembro-me que adorava não perceber 
metade, coser os pedaços que apanhava 
bem vivos no ar, aquelas conversas parecendo
eternizar-se na ânsia de captar algum detalhe 
quanto à natureza do próximo mundo…
Por agora a madrugada ainda assinala
um território sagrado, e nós caminhamos 
encostados à pulsação, atentos a ínfimos 
movimentos no escuro, a corpos
que nos deixaram o ritmo a que respiravam,
respeitando a lua e o seu luto, vagueando 
junto a ela e na companhia dos lobos,
já a mim sempre que a olho dá-me
a impressão de que deve tresandar a álcool, 
acho-a triste, afinal só temos esta ronda
tão larga, mas tão dependente de outro corpo,
e recito-lhe coisas, peço-lhe a opinião,
invento diálogos, apostas, desafios:
basta que chova e já me sirvo disso e juro
bater à porta daquela de quem ainda
vou escrevendo o nome, isto se a lua
e o vento me derem cinco minutos,
um intervalo claro, perfeito
de modo a que se torne indelicado dizer
que não, estando ali eu, de noite e à chuva,
implorando que abra e me convide a entrar.


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