segunda-feira, março 20, 2023


Ouve-se na forma como se esforça
por limpar a garganta,
essa estranha comichão impossível
de engolir, e tão difícil também de explicar.
Não há remorso que não se torne
uma espécie de música,
e o bebedor sabe do rancor que leva
um afogado a beber o mar inteiro.
Outros depois de nós talvez oiçam o canto
que tocou o fundo do tempo como uma garrafa
no leito de um oceano incapaz de o conter,
assim damos mais atenção ao movimento
dos que partem, e em certos seres pressente-se
muito cedo a despedida, o desgosto
das suas vidas como uma eterna demora,
dedicam-se a decorar o inferno,
desenhando arabescos, o contorno de pétalas,
pisam um solo mais fragrante, 
começam a soar um pouco como o vento,
retirando do bolso um lenço para colher
uma imagem agonizante, ou algum livro
de pássaros para as anotações finais:
o que resta do voo de outrora, junto
com a dose de delírio que se impõe 
àquele que recorda,
trocando o receio de então 
pelo exagero e a sofreguidão que estão apenas
ao alcance de quem foi já um pouco
para além da sua vida.
Estes homens que exigiram a obsessão
e hoje só falam a sua língua, como aranhas
tentando prender algo que deixou de existir
ou que a imaginação lançou para fora
da realidade. Resta-lhes o desejo, e este
como se sabe, consegue ser a pior
das nossas armadilhas.


sexta-feira, março 17, 2023


Um início mal escutado
com o canto do galo coado e o nevoeiro
a recozer-se, o sol alisando a saia
para esse amanhecer de pele translúcida,
nesta cidade dos desaparecidos
falamos alto para nos darmos sinais,
o mundo troça e afasta-se de nós.
Por vezes, cruzamo-nos entre hábitos antigos,
vincando o tempo em decassílabos,
as rimas e outros despojos nalgum caderno
com vista sobre um campo de melros
presos por um assobio. Espreita ali:
um desenho e um nome num muro
são a voz um do outro, e quietos
como quando aprendíamos a ler
chegamos ao fundo disto, o sermos daqui,
e estes lugares desfeitos em pó
que o vento arrasta falando por nós.
Temos feito de tudo por retomar 
a articulação com as constelações,
mas tudo soa a uma longa despedida,
um comboio que nunca parte, a sua agonia.
Mesmo se os versos nos dizem que a beleza 
nunca fez outra coisa senão esperar,
se a água continua a ser doce na minha boca,
o resto azedou. Ponho-me de pé,
vou-me separando: carne e óxido,
a haste de milho dobrada pelo vento,
este campo de melros, como num sonho,
ligados por um assobio, e assim
escutar tudo o que dos nomes se apodera,
e aquilo que voa e parte deixando para trás
esse resplendor contrário, a vida do avesso
ou as formas que já não reconhecemos.



Acabarão por te valer de pouco os anos,
e talvez só de umas quantas horas se possa
ainda colher um resíduo do que guardaste
na boca, reduzido a um gole, cheio de ardor,
quantos vinhos, algum verão inestancável,
um canavial pintado à mão e os insectos
entre o quadro e a sala, o silvo rasgando de um
lado ao outro, esse ritmo de água corrente,
aqui, aqui, só há agora e nunca, e os relógios
temo-los desfeitos, as entranhas de fora,
também a máquina de escrever gostamos
mais dela assim, decomposta, aos bocados,
e os papéis por aí, eternas revisões, damos
tantos erros, com um cuidado maior
do que se ficasse tudo de acordo, as molas
saindo fora do colchão, levar a chávena
de uma divisão a outra, o lápis na boca,
são os gestos o que importa, a única coisa
que nos segura à tona, compondo o instante,
insistindo num resto de ordem para não
se sentir afogado, este soberano arbítrio
sobre as pobres vogais e consoantes,
como quando seguimos o dedo de alguém
firmando uma improvável constelação,
ou a tremida impressão desses jardins 
convocados pela chuva e que mal esta cessa
não voltam a ser encontrados.


domingo, fevereiro 26, 2023



Podemos dizer as mesmas coisas uma
vez mais e outra enquanto perdem o sabor,
é o que te pedem: que fales, escrevas
o teu nome e te expliques
nessas linhas frias e cortadas
onde lemos "o perfil de anjos inviáveis",
a razão pouco clara, uma água com reflexos
bastante antigos, já desfeitos,
murmúrios à beira de um abismo.
Procuramos restituir aquele ambiente
de narrativa, procurar a voz
nos lugares de antes,
dedicamo-nos os gestos que outrora
fizeram para nós mais sentido.
Pegas nessa cabeça jovem que tiveste
e voltas a colocá-la no teu corpo 
cortada uma e outra vez por bons motivos,
e abres os olhos, voltas a falar
e cada palavra te sabe ao princípio das coisas.
Não sabíamos nada de música, só a vontade.
Como pudemos então dançar e este
nos parecia outro mundo.
O teu vestido azul, o gosto de te carregar
nos braços fazendo-me de forte,
e se a sede me fizesse agora beber
aquela mesma água do chão, hoje eu
quereria sorver o teu reflexo, os passos,
lembrar como a vida tinha pouco cuidado,
como ela foi antes de ser preciso esconder-se.
Os melros estão entre as poucas coisas
que se dão a ouvir como dantes.
Os nomes estão exaustos, a voz recolhe
uma parecença sombria, e depois acaba
antes de começar. O que sobra
já não tem semelhança com nada,
as comparações doem-nos, e o idioma
torna-se inútil sem o desejo de apontar ou
de tocar, como também não apetece
mostrar ou trazer à boca.
E fica claro então que não se pode
fazer com as palavras isto
que vamos fazendo ao mundo em silêncio.


sexta-feira, fevereiro 24, 2023


Estes não falam já língua nenhuma,
mas sabem estar ali e fazer do corpo 
esse feixe de impulsos radiosos.
Como quem conserta a pia da cozinha,
este monta algum acaso,
e ao redor vêem-se essas poeiras,
as manchas,
os sinais de uma luta que durou.
Domesticou um relâmpago e serve-se dele,
toma notas, risca, permanece alerta
a indícios, persegue-os
vai compondo de ouvido a tempestade,
perdem-se tantas páginas com uns rabiscos,
e mais à frente damo-nos conta
de que era o vento, e de como ressoa,
tudo fica aos solavancos, a casa persiste
numa desordem melódica,
e mesmo ao longe sente-se a impressão
das marés. E ali ficou a capa arrancada,
um pouco da cola nos dedos.
Tinha tantas maneiras de estar em equilíbrio
neste mundo movediço que se ri
da adaptação.
E agora é inútil exigir à memória
que cale o bico,
tomou o gosto ao vazio
deixado pelos seus hábitos, gestos
da vida que ignoramos, e que volta depois
torrencialmente,
o cuidado com que se demorava
junto às janelas,
aquela fraqueza que permitia à luz
fazer estranhas comparações.
Bebíamos café aos goles da imaginação
um do outro, ela
fazendo com as mãos o gesto da chávena
e eu a pintá-la. 
Às tantas nem era já muito claro a que reino
pertencíamos, mas pela derrota
pela ruína que sobrou, por esses
indícios que hoje copiamos 
talvez sejamos fiéis a
não querer outra coisa, não estancar isto,
nem esvaziar os cinzeiros ou os pratos,
definhar no cheiro do fruto mordido
guardando o caroço.

quinta-feira, fevereiro 23, 2023

 

Para o Changuito


Ainda dormimos nas nossas mãos,
ainda dependemos dos pássaros
para nos erguermos, para que a manhã não
nos escape inteiramente, 
para que o dia faça o que faz ainda
que a carne lhe fique alheia.
Estão distantes muito mal escutadas
as coisas que importam,
há uma bebedeira há muito aguardando, 
uma noite eficaz enfim, essa
para onde apontam os aflitos.
Há mais qualquer coisa viva, há gestos
ainda capazes de perturbar o tempo.
Precisamos que alguém o leia para nós
leia alto os signos que temos à frente,
e os revezes, os regressos e a raiva,
que sopre, que mexa nos sonhos
como se mexe com a colher na chávena.
Dobro-me sobre o joelho, ouvindo-o
e desenho a lápis um navio, ele range
no meio de alguma tempestade.
No andar de cima um miúdo chora
e nós por baixo no escuro lançados ao mar
ouvimo-lo ler Camilo Pessanha
fumamos os cigarros que ele pousa 
com o fumo a desenhar um fio, uma linha
e ele cosendo da noite os contornos mais finos.
Somos arrancados de baixo para cima, 
em todos os sentidos,
não pela carne, mas pelo vazio,
as chamas que se adivinham já.
Isto range por todos os lados, 
o meu navio sofre e passa mal
chocamos em tudo, desfazemo-nos em espuma
Outros fazem algo parecido, mas horrivelmente 
e dão completamente cabo do infinito.
A qualquer hora estão aí as notas deixadas
pelos pássaros na pauta, há um acesso
para essa noite do outro lado disto,
da vida, e um homem passa muito perto
cantando embaraçado a canção que não o larga.

sábado, fevereiro 18, 2023

Luís Miguel Oliveira e a crítica de cinema que se faz no "Público"

 

O Luís Miguel Oliveira julga-se um crítico de cinema quando na verdade não passa de um afanoso adulador. Anda ali na ordenha das suas vacas sagradas, e mostra-se muito por aí com uns grandes bigodes de leite que vai revirando enquanto finge estar ainda sujeito aos abalos de uma conta que não deveria estar fechada, mas remete-se habitualmente ao papel de um funcionário da ASAE do cinema: lá vem ele com a sua lista de requisitos, normas, os seus impressos e folhetos informativos, e aplica coimas, vem redigir autos a falar do perigo para a saúde pública em nome desse género de cinéfilos que se deslocam algaliados à sala como inspectores muito maçados por abandonarem as suas criptas. Eis um bando de narizes convencidos de que só eles podem desempenhar aquela tarefa, mas se agora, coitadinho, se vê como a vítima de uma terrível purga, um mccarthysmo dirigido contra os pobres dos críticos do Público, eles que, no fundo, só estão ali a pugnar pela decência estética cá no burgo, eles que se pronunciam sobre tudo sempre a partir dos seus dogmas e argumentos de fé, ameaçando de excomunhão quem não respeite a hierarquia daquela cangalha, nos seus textos não há verdadeiramente uma reflexão crítica, e o cinema não é outra coisa além de uma disciplina desgarrada que serve a uns quantos para nos virem com a sua bagagem e vincarem as suas especializações, os vinte e tantos pós-doutoramentos em pintelhices, vivendo empoleirados a compor nas paredes os seus diplomas idiotas, mas, no fim, o que ali temos são almas deliberadamente impositivas. E isto reflecte-se no estilo e na linguagem que usam, dedicando-se a expressar juízos baratos, fáceis e precipitados, sem nunca discutir verdadeiramente aqueles valores que nos impõem, e tornam-se, por isso, a encarnação da presunção. No fundo, são péssimos estilistas e que não se ofendem sequer com a incurável dissonância entre a suposta superioridade das obras que aclamam e aquele registo desleixado, produzindo lixo do mais barato em termos de jornalismo, que é a opinião que se vai espojando em textos marcados por um diletantismo e uma soberba absurdos, que avança deixando uma quantidade de pontos soltos, e em que, no fim, acaba tudo emaranhado, cheio de buracos, curto e apertado, e isto fingindo debruçar-se sobre temas complexos, os quais nunca chegam a dominar. Assim, a crítica que faz um Luís Miguel Oliveira, como é patente a propósito do filme de Vicente Alves do Ó, não é senão o exemplo da mais ilícita usurpação. Ele não quer falar daquele filme, já foi para a coisa indignado por obrigarem sua eminência a aturar aquela estopada, e trata de servir-se da oportunidade para o abalroar e expor as suas preferências, vir-nos falar de um outro filme, não para contrastar, mas para seguir com a sua eterna e entediante prelecção, expondo a sua lista de exigências como um terrorista mimalho e taralhouco, que goza daquela condição de estar num jornal em que os colaboradores da secção de cultura há muito se organizaram como uma maçonaria, bloqueando a entrada de novos membros de modo a garantir os seus lugares cativos, e que ninguém senão eles está em condições de exercer o ofício de avalizadores das gemas do cinema ou do raio que o parta. O certo é que diante da absurda maioria das críticas de cinema que se lê no Público a única vontade com que se fica é a de não pôr mais os pés numa sala de cinema. Estas críticas não procuram informar, alargar a perspectiva de campo e suscitar o debate, mas encerrá-lo. Não são sequer polémicas, mas enfadonhas missas descocadas de uns curas animados pela ideia de se perpetuarem no palanque e entre santinhos de altar numa “província profunda a guisar no seu próprio molho”. E nem são tão parciais e apaixonados nas posições que assumem quanto são desdenhosos, reservando o seu culto, cobrando pelas sessões em volta da pia baptismal, para que possam resguardar-se como uns bispotes numa atmosfera artificial de adoração mútua. Quando o Luís Miguel Oliveira entra na sala de cinema parece estar convencido de que a única coisa que ali merece ser exibida é a sua prosápia, e a tarefa do realizador será negociar com ele os termos para que não faça das outras pessoas na audiência os reféns da sua birra. É como uma espécie de cabeleireiro que em vez de nos fazer o corte, dar uma ideia daquilo de que trata o filme e desenvolver alguns pontos de forma incitante, de modo a que, mesmo que o filme seja um pastelão, se possa ainda reflectir sobre alguma questão paralela, em vez disso, este cabeleireiro entrega-se a uns esquentamentos, põe-se a exibir a urticária e às tantas está com a cultura cinéfila como tesouras a fazer-nos movimentos rasantes e nós ali sentados com aquele imenso babete negro a tentar manter a compostura. No fundo, dedica-se a expressar teorias simplórias, a exibir umas referências que ficam no ar como pó de talco, e que assombram a burguesia decente. Mas quem se habituou a ir ver os filmes depois de ler aquelas críticas já se deu conta de que aquilo não passa de uma teatrada, e que o cinema é só um pretexto para estas pilecas darem as suas voltinhas no picadeiro.


 

quarta-feira, fevereiro 08, 2023



Os estorninhos comeram-nos as cerejas 
que cresciam todo o ano no quarto.
Até ali vestíamo-nos, enchíamos os bolsos
antes que o sol pudesse saber e
íamos a vincar os caminhos com caroços,
a ver se o mundo desaparecia.
Nesse ano sentei-me ao lado de Em.,
que deixava que a copiasse, não
as respostas, mas a dor, a eternidade,
as sombras quietas sustendo a respiração,
e como a paisagem a ouvia, a mim
só a metade me chegava, 
o resto cabia aos anjos virem buscar.
Punha ao lado umas das outras as peças
mais estranhas, e riam-se assim.
Hoje retiraram-se para outras latitudes.
As estações estão já descosidas,
botões nas gavetas, nos bolsos umas
das outras. Talvez ainda se ria.
Já não encontro a cicatriz que me
fez, não me chega a velha comichão,
o resíduo que o sentido das coisas deixava
nas mãos. Cubro a mesa dela com o casaco.
Faço o que posso, imito-lhe a estranheza
a ver se me toca o mesmo encanto.


sexta-feira, fevereiro 03, 2023


Temos o que temos, e são palavras,
diz-me o velho, hoje frágil, mas que com elas
soube em tempos ser um bruto 
sem pedir muito, olhando em redor,
contendo o escarro, pois podia arrancar
mais fundo algo mais sujo,
e manchar até ao último suspiro uma vida,
como acontece com os mais costumados
dos sedutores, esses que do limitado espaço
de um postal fazem grandes enredos,
elidindo as frases, recalibrando as peças
que andam soltas num suspiro,
quase sem tocar, ouvem bem onde começa
o vazio que tem feito as vezes da alma,
enterram ali um centavo, um lenço dobrado,
uma pena de um pássaro amalucado,
sem correspondência com nenhum catálogo
ou os céus daqui, vão dando voltas,
e depois alguém se lembrará do absurdo efeito
disto, de como dedo a dedo, em cordão, as
vértebras me contavas, como a mão
às tantas já nem diz respeito ao corpo,
como se muda a disposição íntima do mundo,
como quem está ali frutifica de súbito,
e aparece dias mais tarde com um novo
corte de cabelo, e aquele sorriso indescritível,
a expressão terrível de quem acredita.


sexta-feira, janeiro 27, 2023

Rui Caeiro, um retrato


[texto lido ontem, numa sessão evocativa junto de familiares e amigos do Rui]


Acabamos de editar na Língua Morta um livro de que me sinto particularmente orgulhoso por trazê-lo para o lado de cá, desde logo porque teve um percurso atribulado antes de chegar a nós, salvando-se pelo caminho de se tornar num desses modos que uns têm de se aproveitarem do entusiasmo de outros.

Gostaria de começar por vos ler uns aforismos que, não houvesse hoje a necessidade de nos encontrarmos para disfarçar a falta que o Rui nos tem feito, o mais certo é que estivesse a partilhá-los com ele, porque foi isso o que sempre nos ligou mais depressa – a partilha de entusiasmos –, sendo certo também que ele já os terá lido em tempos, aguardando a ocasião de nos juntarmos à mesma mesa para ouvirmos as vozes de Antonio Porchia, este poeta vigorosíssimo, que, de cada vez que abria a boca, não precisava de respirar duas vezes para ir até ao fim, dizer tudo, e alguém que, como tenho vindo a descobrir por estes dias, tanta coisa tem em comum com o Rui.

“Quando o superficial me cansa, cansa-me tanto, que para descansar necessito de um abismo.”

“Não acredito nas excepções. Porque acredito que de um só não há nada. Nem a solidão.”

“Sim, isso é o bem: perdoar o mal. Não há outro bem.”

“Vive-se com a esperança de chegar a ser uma lembrança.”

“A verdade tem muito poucos amigos e os muito poucos amigos que tem são suicidas.”

Por isso é tão importante a arte de se saber contar a verdade, como é importante saber fazer esses anúncios desoladores, dar as notícias piores e que assinalam momentos de mudança, tantas vezes tão difíceis de engolir. Eu que tenho tão má memória, ainda me lembro do momento em que me foi dito, ao telefone, pelo filho do Rui que ele morrera. Tinha acabado de acordar, tinha duas chamadas não atendidas. O Rui estava internado, e esse desfecho, ainda que talvez um tanto antecipado, não deveria ter constituído uma grande surpresa, mas foi. Ainda hoje permanece assim, ainda me espanta que o Rui tenha morrido. A sua inteligência faz-me falta, aquela sua paciência para com a vida. Ele sabia, como Porchia, que “o homem não vai a lado nenhum, mas que tudo vem ao homem, como o amanhã”. Ele sabia também que “vivemos de lembranças, de momentos”, e como é isso o que realmente nos alimenta. Tinha essa sagacidade simples de os procurar, de não se fazer de desinteressado, de não imitar os modos frios, o regime dessa gente indiferente a tudo, e que antecipa sem o saber o seu próprio fantasma ou cadáver. E, uma vez mais recorrendo às palavras de Porchia, ele entendia que “para conviver é preciso ter-se um estado de consciência”, e que essa é a mais bela das descobertas, a noção de que viver é conviver. “Viver é fazer viver”, disse Porchia numa das poucas entrevistas que deu. “O homem não retrocede. Pode haver até um suicídio da humanidade, mas nunca um retrocesso.”

Nunca vi no Rui ou nos seus gestos qualquer resquício dessa resina delirante que fica dos sonhos que não sabem como cumprir-se neste mundo. Pareceu-me sempre que a sua afável e inquietante grandeza vinha precisamente de ter sabido rejeitar o desejo de que a vida fosse outra coisa, ainda que se esforçasse para que as coisas fossem um pouco melhores. Ele sabia como um pouco já faz uma grande diferença. E, de resto, nunca quis senão viver modestamente, rodeado dos gatos e dos tantos livros que acumulava obsessivamente, como se a eternidade fosse um período incerto de grande aborrecimento, e houvesse que preencher a sua biblioteca para os eventuais séculos até que também esta se convencesse a procurar um fim. Como ele escreveu num desses contos que tinham sempre o balanço próprio das parábolas: “um paraíso nunca é como a gente o sonha. Até porque a gente, ao sonhar, limita-se a sonhar parvamente a perfeição. E um paraíso não é perfeição nenhuma, estou em crer. Um paraíso é tão-só a sua própria realidade, frágil e nua, desarmante.”

O Rui dizia-nos as coisas como elas são, sem as alterar arbitrariamente, praticando um realismo pacato, mas de profundidade abissal. Assim, as páginas que nos deixou, sendo aparentemente leves e elusivas, na realidade oferecem-se a uma forma de convivência prolongada e acabam por revelar-se bem mais inquietantes do que as ruidosas ostentações subversivas daqueles poetas que se esforçam ridiculamente para nos fazer crer que sabem alguma coisa que transformaria as nossas vidas se também o soubéssemos. E, no entanto, são estes os que andam sempre a aborrecer-nos, a perseguir os leitores sempre com novas fórmulas, com aquele ar sarnoso dos ressentidos.

Para o Rui, um livro era um modo de dois amigos se procurarem nas horas em que é mais difícil superar a solidão. Nele qualquer indício de vaidade era um modo de querer ser-nos íntimo, perpetuar-se numa lembrança mais funda. Não havia nele esse entusiasmo de derrotar o outro, assumir sobre ele algum tipo de influência amesquinhante como parece hoje ser a intenção de tantos criadores, e poderia ter roubado com melhor proveito este aforismo de Porchia: “Acreditando termos algum valor, prejudicamo-nos.” O valor que atribuía às suas coisas parecia evidenciar-se apenas na medida em que pudesse transmitir-se sem cobrar grande reconhecimento por eles. A sua generosidade estendia-se a uma preocupação com o desperdício que dinamiza tanta da literatura que entre nós se escreve, essa superficialidade da linguagem que se mascara de uma propensão para o barroco. Praticava um verso distendido, uma prosa regular e com esse alcance espirituoso da melhor oralidade, num registo que parecia entregue ao ritmo do marchar, como se o lêssemos e ele fosse ao nosso lado, destilando a sua sabedoria que era, antes de tudo, muitíssimo paciente, desde logo com quem o ouvia, sem antecipar um desfecho, engendrando frases que se expandiam com a nossa própria odisseia pessoal. E é este o segredo da longevidade de uma obra que está ainda numa espécie de infância, pois o Rui será lido daqui a muito tempo, aproveitando-se do balanço também dos dias que virão. E tenho tanta confiança nisto por reconhecer nela o perdurável encanto de uma escrita que tem o cuidado de não revelar imediatamente tudo, não para fazer suspense, mas para realmente poder fazer-nos companhia. E isto sempre num tom que indicia proximidade com o leitor – desde logo porque o Rui nunca teve essa veleidade tão comum no nosso tempo de imaginar que outros que não os seus amigos pudessem prestar uma atenção mais funda às coisas que escrevia. Ora, uma parte decisiva do gozo enleante de o ler reside na estima que se cria entre nós e ele, a qual nos dá confiança para continuar a remexer nos seus textos e livros sabendo que neles nos aguardam outras revelações para as quais antes não estávamos ainda disponíveis. 

Como escreveu Porchia: “Ajudar-te-ei a vir se vieres e a não vir se não vieres.”

Num momento de dúvida, alguém abre um livro do Rui ao acaso — que no fundo não é um acaso — e recebe um conselho muitas vezes sem se aperceber. Até porque “quem diz a verdade, quase não diz nada”, assegura Porchia. Há, por isso, uma grande subtileza nesta forma de se dar aguardando a ocasião certa, e o Rui, que sempre foi um mestre de alusão e reticência, sabia unir uma visão desiludida e que roçava até, às vezes, a crueza a uma dolorosa e indulgente compreensão humana. A mim, foi-me ensinando, com grande custo, a desconfiar amavelmente, a aceitar o lado de promessa que nos é feito pela falha do outro, na medida em que esta também reflecte a nossa, e nos dá margem para nos reconhecermos mais profundamente, o que só é possível num reflexo que, ao contrário daquele que nos oferece o espelho, não repete sucessiva e imediatamente nem acolhe cada um dos nossos gestos. Os reflexos mais fundos são os que surgem desfasados, e podem, também por isso, oferecer-nos algum alento nos momentos piores. E sirvo-me de outra das vozes de Porchia: “Sim, isto está mal. Mas esteve bem. E agora não compreendo como pôde estar bem. E agora não compreendo como pode estar mal.”

É esta compreensão o que se nos oferece mesmo quando o encontro entre nós e o outro decide as nossas vidas, como acontece no amor, e só muitos poucos sabem isto. O Rui sabia-o, como o amor se faz de uma convicção profunda que se exprime através de uma longa espera:

Porque
amar é
meter na boca uma pedra
e aguardar
o despertar das papilas
o seu recreio
e abandono
o seu desvario

e
também é
a gente perguntar-se
o que fazer
com as sobras
a saliva
os sonhos enregelados
a pedra

O amor é assim essa disciplina dos que ficam de pedra e cal, dos que resistem à própria vida, e estão lá na altura em que a morte se põe a rondar. "Diante da morte o importante é estar", vincava ele logo entre as primeiras coisas que nos disse.

O Rui tinha essa firmeza, tinha “no rosto o sorriso invencível dos/ perdedores”.

No amor está-se, evidentemente, para se perder, para sentir o fio puxar-nos até ao fim, com uma dor que não abdica de si mesma. O amor profundo adianta-se e antecipa todos os desfechos, mas depois também se recusa a livrar-se do luto. Mesmo se já não há nada a fazer, na lembrança ainda há uma força que transforma e cria, pois sente em si tudo o que não existiria de outro modo, tudo o que pertence ao outro. Ou, como escreve Porchia: “A perda de uma coisa afecta-nos até não a perdermos toda.”

Da mesma forma, poderíamos falar desse ancestral encanto de se olhar o céu de noite. Esse assombro diante da imensidade do que nos chega desde distâncias absurdas face às nossas medidas, mas que não deixa de se recolher no nosso olhar, como um sinal de presença insistente e quase fervoroso. “Sim, são milhões de estrelas. E milhões de estrelas são dois olhos que as fitam.”

Este abissal desequilíbrio em que a vida nos coloca face aos elementos que nos cercam já nos obriga a encarar a impossibilidade, a morte, o nada. Mas também a não apagar esta hipótese improvável de haver algo na experiência humana de tal modo integrador que, de bom grado, suportamos essa ferida. E nunca como quando entregamos uma flor como um gesto dedicado a alguém que já não a pode receber das nossas mãos sentimos tão fundo a perplexidade deste aforismo de Porchia: “A flor que tens nas tuas mãos nasceu hoje e já tem a tua idade.”

Outra das vozes diz: “Cheguei a um passo de tudo. E aqui fico, longe de tudo, um passo.”
De algum modo, é esta a distância que é necessário percorrer, e sempre foi isso o que sentimos como a maior traição: não que alguém não tenha conseguido alcançar aquilo a que se propôs, mas que nem tenha dado um passo nesse sentido. Quando o Rui morreu alguns não quiseram ou não puderam dar esse passo. Quatro anos depois estamos ainda mais desfalcados. E o que nos diz Porchia ou diria o Rui se pudesse: “Percebemos o vazio, enchendo-o.”

O Rui nunca me ensinou outra coisa que não passasse por isto, e, às vezes quando descubro um livro ou um autor que causa em mim aquela forma de admiração radiante, ou que me perturba realmente, me desafia a ir a lugares onde me recusaria a ir a sós, seguindo sugestões que raiam o pavor, tenho ainda a tentação de lhe ligar. “Quando me encontro com alguma ideia que não é deste mundo”, escreve Porchia, “sinto como se se dilatasse este mundo.” Quando isto me acontece sinto que o Rui teria gosto em andar por ali comigo. Outras vezes apetece-me ligar-lhe apenas por desgosto com a vida, porque: “Nada não é somente nada. É também a nossa prisão.”

Este país tem sido muitas vezes essa prisão, e o pior é a forma como vamos sendo privados da companhia daqueles que nos vêm com os seus planos mirabolantes e fazem alguma coisa por essa forma de evasão ao nível do imaginário que passa por criar uma espécie de ritmo contagiante e uma visão que nos aguente e que possa ser transmitida entre as celas como um fôlego novo e alentador. Invariavelmente, acabamos por nos ver de roda daquela frase de Alexandre Herculano: “Este país dá vontade de morrer.” O Rui era um bom vizinho para se ter nesta choldra, pois tinha sempre histórias, bons motivos para despistar esses instantes em nós que, por uma certa falta de carácter, se mostram dispostos a atirar a vida à linha por lhes faltar a experiência de sentir a morte a revirar-lhes os bolsos ou a compor-lhes a gola do casaco: “Que triste figura fazes assim… Imagina que, ao ar de espanto que porias se te visitasse, ainda deixasses aos que te descobrissem o corpo esse ar de desmazelo. Talvez pensassem que já estavas no fio, e que não se perdeu grande coisa.” É bom ensaiar-se assim, e ouvir da morte esses avisos que noutros tempos se ouviu de uma mãe. 

Provando o que comecei por vos dizer, que tanto há que aproxima um e outro, deixem-me ler-vos um pedaço de um texto que Roberto Juarroz (poeta que eu e o Rui traduzimos e publicámos juntos) escreveu sobre ele, depois da sua morte: “Possuía a rara arte da atenção inusitada e crescente, de uma atenção que parecia uma presença quase física. Quem com ele estava sentia, quando falava, que cada palavra se tornava profunda pela sua atenção ilimitada. A sua forma de escutar parecia criar a profundidade em seus acompanhantes. E quando ele falava, tínhamos a sensação de que o fazia já ‘desde o outro lado’, que por outra parte se tornava então infinitamente próximo, muito mais do que deste lado. À medida que avançavam sem nos darmos conta as horas das frias madrugadas de Buenos Aires, os seus pequenos olhos eram como dois focos cada vez mais despertos e brilhantes. Quiçá ali tenha nascido a minha suspeita de que a eternidade poderia consistir em ficarmos detidos ou presos num grande pensamento, pensando-o para sempre, e que morrer não seria mais do que o último esforço da atenção, o abandono dos outros pensamentos, para concentrar-se num só, definitivo. E penso que ali também nascera aquela sensação, recolhida em alguns dos meus livros, de que pensar num homem assemelha-se a salvá-lo.”

E, levando em conta o que acabei de ler, parece-me que é importante aquilo que aqui estamos hoje a fazer.


 


Condenados de antemão por crimes tolos
desses para ilustrar um argumento, 
por gabarolice, para fazer um desenho no ar, 
aligeirar o fastio dos amigos
e dormirmos depois pelos telhados
com as estrelas a tatuar-nos as costas,
em lugar disso, damos com a vida amarrada 
presa pelo tornozelo à cama,
só acontecimentos derramados,
flores murchas num vaso
a ouvir o luar pingar do quadro
que já vinha com a moldura.
Isto não tem frente, e nem focinho
ou dentes, se falamos na guerra,
se nos defendemos tomam-nos por loucos,
se montamos algum motim ainda pior.
Como luzes riscando o escuro nas trincheiras,
fumamos, escavamos, decorando o buraco,
com os cadernos tomados pelas ervas
da marginália, grilos a roer os apontamentos,
lavamos os olhos nestas poças,
temos ainda uma estrela diluída
num copo de água, a espinha de algum raio
 a servir de lâmpada, bebendo um gole
tentamos tirar este gosto, esse velho nó
na língua. O receio de ter perdido a mão
fez-me catar migalhas, substitutos do tabaco, 
redigir sobre a ordem dos sinais noutro corpo,
o suave cheiro a sabão, às vezes o sabor
dos mirtilos, essas provocações que ficam
de uma época para outra,
e ainda o instinto de sobrevivência
que se acha em algumas lembranças,
aquela sílaba que se encanta e arrasta,
que deixa um dedo pousado sobre o lábio
de um momento, impressões
arrancadas com uma precisão delirante 
provocando o fascínio das tempestades,
tão longe disto tudo que a chuva
que depois cai
parece até falar em outras línguas.


quarta-feira, dezembro 28, 2022


O que de melhor há
para definharmos alegremente 
são os transportes públicos, comboios suburbanos
dos que seguem vazios a horas que não importam
para lugares sem interesse nenhum,
aqui voltamos a observar tudo
com uma clareza dolorosa, 
a ler seja o que for, e até os jornais,
na perpétua busca de uma linha convulsiva,
uma esperança de nada em nada
medida, cosendo pelo meio
estranhas associações, imagens,
tudo num mesmo tremor
até que os reflexos aprendam
como estalar os espelhos.
Sentimos a ameaça de um pardal,
emissários discretos da natureza,
o coração examina tudo, e o sangue volta 
frio de cada miragem, e aos poucos
volve-se essa ruína que se rói no escuro
São sempre poucas as mãos e menos
as linhas, e de que nos serve
puxar tudo de uma vez só,
para onde? que terra, que prato ou sonho,
o que seria capaz de sorver
o mar onde encharcamos os órgãos
onde estes amadurecem
como frutos mordidos por nós tantos anos 
antes? Estas noções regressam connosco,
flutuam perfumando os quartos 
onde nos refugiamos exaustos da memória,
desse balanço, absorvendo a corrente
na carne. Tive uma distância imensa
em tempos, como um animal doméstico,
fazia-lhe festas e tudo me parecia
suspenso num grito,
a luz acesa sempre espantada,
as lembranças vinham falar-me de si mesmas,
infinitas conjecturas, essa névoa um tanto
desarticulada e da qual emergem
as poucas conspirações que contam ainda 
para alguma coisa, que fazem da loucura
uma espécie de passe social.


segunda-feira, dezembro 12, 2022


Sem tirar a roupa toda, aquilo primeiro,
isto depois, o que sabemos fazer um
do outro enquanto a vida não o faz melhor,
desfazendo-nos de vez. E nesses ensaios,
de passarmos tanto tempo na cama
vamos aprendendo sobre astrologia,
religiões antigas, a surpresa das luas, a 
convicção das flores contra o muro,
pomos hipóteses rudes, raras, e vamos
afinando os resultados atentos às vozes
que seguram o mundo, suaves como sombras, 
o peso de um barco sobre os papéis,
a espiga de trigo irradiando de sol
dentro de uma garrafa, essas anotações
que aos miúdos servem como documentos,
como se foge de casa aos doze anos
como nos parece que o vento trespassa
a flor que sem se alterar logo
se desfaz do corpete de aspas e dança
e o chão parece revolver-se no gozo
de beber o seu reflexo. Fazemos distâncias
num respiro, o corpo inteiro chega a ser
apenas um modo de atar tudo e sustentar
a boca, os dias que interrompem o curso
das coisas, esse gesto de quem larga
um bando de abelhas bêbedas
sobre o tabuleiro e inventa o seu jogo
enquanto declama uns disparates 
embebidos no mel de noções extintas,
a pose desafiante de actor, meio ridículo 
meio deslumbrado com o texto que decorou
antes que o pudesse entender, e só depois,
nos ritmos que força e a que se entrega,
o descobre entre variações impetuosas
e contra todo o naturalismo,
contra a vida de castigo das telenovelas,
o sentido logo surge em debandada,
com o seu balanço absurdo,
a harmonia quase delirante, e ele ferve
e agarra quem puder e despe-se,
e beija-a porque a cena lho exige,
interrompe-se, põe-lhe um dedo
na cova do queixo, interroga-a,
faz-lhe as acusações mais abstrusas,
causa-lhe arrepios, faz com que se ria,
enche bem a mão com os pêlos
sobre a cona e puxa-lhos depois sopra
e morde de leve e passa a língua toda,
aspira e crava as consoantes e deixa-lhe
as vogais, e isto menos por capricho
ou apenas desejo do que rendido
ao entusiasmo de fazer da carne um candeeiro
recortando figuras, enchendo as paredes
do seu cinema, a alegria inebriante
da acção sem um porquê, mas tão-só 
pelo talento que há nos grandes amantes 
para se exibirem, esse ânimo exemplar 
com que voltam a fazer da cama um palco.


sexta-feira, dezembro 02, 2022


De tanto insistir torno-me um ser
mal escrito, sem cortorno certo,
rasando as paredes no tumulto
de ir lendo com a pele essa balada
dos corpos que se movem suspensos de fios
como de uma música inaudível, 
debruço-me sobre eles
como sobre as luzes ao longe,
testemunhas da nossa dissolução.
As imagens são hoje as cinzas deste mundo
e o silêncio dói como nunca.
Podes ficar por aí, e ficas, tentando de tudo
com esses olhos, e às tantas é a atenção
que se torna pornográfica,
o modo como a olhas, a sensação
de que seria preciso um tremor de terra
para te interromper. Só as flores exibem
maior determinação, demoram-se
até à morte, e apesar de toda a elegância
são a carne de um fascínio que um dia
decidirá pelos deuses sobre o interesse da vida.
Nem precisam de mãos para nos deixar cair.
Quando deixam de nos dar corda,
há uma tristeza para nos enraizar na cama
por séculos. Enquanto o seu perfume
nos envolve, podemos vingar-nos 
da nossa brevidade, e a noite torna-se tão densa
que se pode bebê-la. Não sabe melhor
nem pior que algum vinho,
mas deixa-nos marcas espantosas para os dias,
sinais do excesso, tudo o que trocamos
mais perto da cama. Quebrados os espelhos,
os reflexos vagueiam entre a minha
e a tua memória. Estou a ver-me ali de pé
com os dedos no interruptor aguardando
a expressão perfeita antes de apagar a luz 
e reter para sempre o instante
em que a intimidade me servirá
a sua flor mais indelicada, um sorriso igual
ao que me mostrou sempre o escuro.


quarta-feira, novembro 23, 2022


Somos fiéis a tão poucas coisas, à luz
que se balança ao nosso redor,
a nomes impossíveis para o nosso timbre,
praças onde a ausência nos morde o ombro.
Cada vez são menos as vozes íntimas da nossa,
e a memória busca os sons
como dentes espalhados.
Também ao fogo se acaba a música
e só então admira o seu rastro,
como um corpo ao afastar-se da cama
incapaz de suportar as imagens de há pouco,
o desmazelo que resta após um frágil encanto
ter tido a sua dose.
Invejamos o amante que é leal a si mesmo,
leve e insistente, tecendo no escuro
a sua corda harmoniosa, aquele pulso
segregando um doce enredo.
Gostaria de encostar o ouvido e provar
o sabor de ser eu, por fora
e em todas as coisas, como ela faz,
cantar à superfície, balançar-me num respiro.
O gosto de morder o que nos é estranho
e cantar a própria pele num acordo
com outra vontade. Ouvir na distância
que o outro nos pede esses frutos
que não deixam de cair mais e mais fundo, 
vibrando na carne como uma ideia fixa
que vale pelo mundo, esse escuro
de que se olha cosendo com a linha mais rude
uma frase para se ter debaixo dos dedos 
enquanto a razão se perde
e apaga todos os caminhos.


quarta-feira, novembro 16, 2022


Não dá para acabar seja como for,
e foges, com o juízo enleado nas estrelas,
enquanto o reflexo nas montras te lembra:
cedo serás sombra... Mas já és,
cada vez mais parecido com a noite
o tipo que se aferra a uns poucos cuidados
que guarda como último prazer
o de ouvir a lua ferir-se nos ramos,
deixando um brilho de leite, mas rugindo
como sangue. O bêbedo é o nosso canário
e fica-se pelas escadas, ao piano
dando resposta a ecos,
a sacudir aparas de antigas paixões.
Não parece, mas é uma conversa,
a agonia banal de quem perde o fio
e não encontra a saída.
Copias notas de suicídio desde que leste
a de Romain Gary, e ensaias a tua:
a mulher que se virou contra a parede,
com a televisão ligada, os frascos abertos, 
migalhas de um sonho impossível de estancar. 
Como um desenho, suave demais
para se prender à carne,
aquela beleza de uma insolência sem necessidade.
Voltas lá, olhas para ela, na cama, sorrindo,
dando-te ânimo para esse tiro na têmpora
que possa enfim corrigir alguma coisa.


sexta-feira, novembro 11, 2022