segunda-feira, julho 22, 2024


Procurado por algum crime que hoje 
já esqueceu, desviou-se da rota, viu
coisas que não esperava da carne
e foi tomado de outra obsessão,
buscando algum fragmento perdido
do relato que impôs esse intervalo
entre a sua vida e ele, interrogando
tudo na varanda entre cigarros, plágios,
como tantos nessa idade incerta
bebemos cerveja, olhamos o mar
imaginando que mais poderá seguir-se,
trocam chistes e lendas estes que ainda
se mostram capazes de alguma ênfase,
descascando a realidade como uma peça
de fruta, deixam-na pelos quartos, 
onde passaram temporadas do avesso
os astros beliscando-os no sono,
entre visões recortadas por outra luz
sob o efeito da qual recolhem
a sua forma mais lúcida. Mais tarde
o sangue há-de perder o gosto pelo mundo, 
mas por agora a noite estende-se sem
acatar limites ou proibições, cada nome
suporta um certo desgaste e ilumina
esta época em que os verbos se conjugam
no plural. O navio aos poucos deixa-se
consumir, a água sob a quilha, a onda
corroendo a popa, da proa esteiras
correndo, onde era a amurada, agora
há videiras, e trepadeiras onde era
o cordame, também as sombras acabam
por consumir-nos o reflexo, o ar sem vida
vai ganhando nervos, e o som que então
nos acerta como um harpão até estes
hábitos próprios de quem se habitua
ao cativeiro, e da vinha que tomou conta
dos remos colhe as uvas com que alimenta
os seus leopardos, entregando-se ao felino
lazer enquanto dispõe sobre o soalho
as antigas escamas, e se despede de vez
do azul profundo que teve ao seu redor.


quarta-feira, julho 10, 2024


Os nossos rostos surgem nos mais frágeis 
reflexos, como eles os recortam
não fazendo ideia com o que nos parecemos
e se jogámos tudo como danados
não poderiam saber que fomos
a descoberta feita uns
pelos outros, desmentidos tocados
de um modo que nem sonham
se sequer sabem como se diz
a luz que sobrevive sem se deixar prender,
e se queremos falar-lhes mais fácil
se torna fazer-lhes a guerra
quando nada dariam por esse antigo encanto
de ver passar, como a alma se cala
chegados àquela velha
doce indiferença, do outro lado
desses miúdos que ouvimos ainda
falar sempre de outros lugares
com um cuidado terrível
um modo inclinado de se dirigirem às coisas,
roubando os gregos e o vento
vindo de longe,
cada noite enchemos um copo
entre os restos desse enorme navio
que se negou e assim cumpriu
a mais estranha viagem,
uma que outra onda ainda
nos revira sacode
e o mar obriga-nos
a beber esse gole glacial
enquanto juntos levantamos a rede
num mudo entendimento diante
da vida e desse sol macio
que mal nos chega agora
no esforço de ler a última linha.


segunda-feira, julho 08, 2024


É tão pouco o tempo que temos
talvez por isso saiba a grogue,
a bebida dos condenados,
levamos um gole o mais longe que podemos,
imaginando como seria bom provar ainda
alguma outra coisa, um travo
que abalasse a existência, de tal modo
que a memória nos servisse de alimento 
como uma eternidade dilatando
os poucos dias que nos restam,
poder despedir-se sentindo a realidade 
coincidir uma última vez consigo mesma,
as árvores a respiração a gravidade
uma banheira cheia de água das chuvas
esses sítios assombrados onde os anjos
deixam as suas garatujas nas paredes
e se drogam e depois se desfazem em pó,
nada sabe melhor que esses adeuses
retendo o nome das coisas pouco antes
deste perder o sentido na nossa boca,
de tantos gritos que se engole
ao longo de uma vida
tudo parece alheado, e então 
às vezes olhas para cima e o céu nocturno 
deixa-te a sensação de que todo esse brilho
toda essa dispersão talvez seja
uma lembrança, os miolos espalhados
de um deus que se suicidou,
toda essa luz capturada, esses ecos
sem saída, e de algum modo é possível
que seja este o efeito pretendido
olhar o mundo e a própria infância 
como uma civilização perdida,
e que talvez só por isso nos cause
uma tão grande comoção.



sábado, julho 06, 2024


Os amantes apodrecem como fruta
mordidos abertos desfeitos uns pelos outros 
por insectos pelo sol, em quartos suspensos 
ao lado de igrejas entaipadas,
deixando nos muros esses hieróglifos 
próprios de seres que tresandam
a uma vida secreta, recordam-nos assim
como a beleza foi um susto, agora
que antigas idades nos rechaçam e também 
como mesmo o olhar é um gesto da carne,
como alguém se lança e pela atenção 
se vê mudado, um gole, um de muitos 
e assim prova a medida e o gosto de outro,
e por isso tantas mulheres acabaram
por desfazer-se do enredo traindo a paixão
afinando gestos frios, oferecendo o corpo
sem especial vontade, para que outra 
música viesse, escapavam-se
dizendo mal o próprio nome,
cobrando um preço, aleatório às vezes
e as que se atrevem sabem o exacto peso
de um sorriso, de um olhar que se detém 
quebrando a paz, dessas variações
e tumultos, que um convite, um gesto basta
para que a tensão extrema da corda
a faça cantar ou romper com a vida anterior, 
uma carta e lá vai algum miúdo com ânsia
de perder-se por “caminhos de sirga
invadidos pela sarça e pela hortelã”.
Com essa letra que se ri nas bainhas
da História, o desejo vinca a sua geografia,
esses signos, imagens nocturnas,
tudo o que ganha radiância mal
nos afastamos do idioma,
quando somos absorvidos pela trama
de quem nos tocou um par de vezes
e com isso recompôs para sempre
o perfume do que perseguimos mal
cerramos os olhos.


quinta-feira, julho 04, 2024


A luz não nos obedece, 
talvez fique pelo beicinho duas
ou três vezes a cada década, mas
tem gostos estranhos
algum pintor atraindo-a com gomos de fruta,
tu e os teus álbuns, os restos do filme
a fotografia que me tiraste noutra vida,
esse animal gigantesco que eu fui
e que já deixou de se mexer,
a sua altura oferece-nos a vista
o remorso e a leve trepidação de certas
lembranças, 
ilustra qualquer coisa, 
como a fome nos desfaz, eu sigo
o teu olhar, tenho ciúmes de todos
os homens, sobretudo os que não são 
de cá, e só estão de passagem
tenho a sensação de ter escondida
uma arma, não sei
fico a ver a tua roupa a dançar
a dar voltas na corda ou a ir
e vir sobre as ondas, 
Abro as gavetas mexo nas tuas coisas
atravessada por um alfinete a borboleta 
ainda bate as asas, e o metal
parece arder, a ferrugem tu tens épocas
desconjuntadas aqui, talheres e jóias 
a casa está suja há fadas e baratas
por toda a parte, 
fazes-me falar sem ser claro onde vamos
esta pequena loira nunca me fez perguntas,
desenho-a na parede ao lado da cama
em cada quarto por onde passo,
aí onde se desenrolam as estações,
onde um estilhaço vivo do acaso
atinge a carne que me resta,
os ecos encontram-se, o ouvido
inventa os caminhos que faltam, 
a antiguidade da água,
a fonte perdida onde tenho bebido
o meu reflexo, prometeram-me
que o vinho acabaria por me matar
e agora às horas das visitas vêm ver-me
mas não me falam de ti, escreve-me
diz-me o que tens feito da luz,
aqui todos mastigam tão devagar
ninguém nos serve um copo, o tempo
não passa, é preciso empurrá-lo
com a ajuda dos comprimidos.


domingo, junho 30, 2024

Luís França e a edição literária entre folhos e fólios




 

Por cá temos muito disto, estas aias pavorosas, presunçosas, que trazem a literatura pelo beiço, e se lançam neste género de empreitadas sempre a armar ao pingarelho: capas duras, edições de luxo, tal é o ânimo de passar graxa na coisa, sempre a congeminar algum berloque, traficando nitratos celestes, merdices arrebicadas... Uns bigodaças, que o maior prazer que tiram da vida é revirar as pontas com ar de entendidos, e que atravessam a maior balbúrdia, gesticulando, dizendo-se tomados daquilo, mas só revelam um gosto imoderado pelos efeitos pastel, uns azuis parvos, uns relevos desnecessários, querem fingir um braille não propriamente para cegos, mais para esses que vivem de apalpar edições opulentas. Catam-se uns aos outros em busca do piolho que brilhe feito pepita de oiro, tontos militares dementes nessa adesão aos elementos postiços, vemo-los sempre encavalitados, recitando uns para os outros e para si mesmos esse desfiado louvor de tantas ondas, sempre com os seus acentos circunflexos retirados do cu, e aquela boquinha em ô-ô-ô... Olha-mesta maravilha qu'eu aqui trago... e desembrulham o pano para expôr uma buceta ressecada, mas preciosamente encadernada. E que se faz com aquilo? Nada, é um objecto mais de colecção, mais para emoldurar, para exibir às visitas, para pegar e virar as folhas usando luvas, quase sem respirar. E se há sempre uns curadores da sua própria cagança, uns que têm com a arte esse trato de bicharoco de museu e se deliciam com essas cabeleiras à luís xiv, aquele feltrozinho em redor do punho, depois espantam-se que quem gosta dos livros para escarafunchar, como uma ferida que se abre entre si e o outro, se marimbe para estes enredos empenados, estes modos caprichosos de vir para a literatura gargarejar alegremente os escarros que outros foram soltando de desprezo por gente assim. Aqui vemos esta resmungona mocinha bater pela milésima vez com a porta do salão de baile que lhe ocupa inteiramente o juízo, ela que esperava já ter sido coroada, vemo-la nuns dramas de casa de banho de liceu sempre a mudar de roupa murcha e a enfiar mais outro vestido de tule antes de voltar lá para dentro, para quinze minutos depois estar cá fora outra vez, reclamando que nunca foi beijada. Faz-se de fina, exibindo os primeiros calores, anseia por molhar o corpinho, mas não se quer misturar com as outras, as putas reles, como nos chama, as de estrada, as que o fazem barato, só pelo gozo, e vem-nos com estes truquezitos de perspectiva, desta feita traz o braço erguido e finge que se confessa ao Jarry, impõe-lhe uma série de remendos e grinaldas, as letrinhas debruadas, a talha dourada caindo naquela feiosa água verde e cinzenta, e com aquele sorriso de sopeira e indignação de princesa exige que algum crítico de nomeada (ou nem isso) a despose. Veja-se como a luisinha, com o afrancesado requinte do sobrenome, se acha no direito de vir reclamar dos críticos que não lhe pagam os sumptuários trapos, se atira a este ou àquele que não está para dar o preço de três refeições, ou quatro, pelo livro que ela mandou confeccionar segundo a linha que dizem ser o último grito, esses monos histéricos clamando por um céu que nos rebaixa como leitores a esses ataramelados modos... Quer atenção e faz destes escritores que nos poderiam dizer mais o seu modo de chantagem, mas em vez de nos passar as sementes para as crescermos nós como pudermos, nos nossos canteiros ou até na banheira, no penico, quer impingi-los metidos nestes requintados vasos para promover a oficina de lontras local, que espera fazer vingar o regime de olaria decorativa, as suas loiças torcendo a vista alegre em vista taciturna, limitando-se a encher de enfeites os lautréamont, os rabelais e mais uns que se juntam e, como daquilo só lhes fica a ideia de ruído, trazem os tachos e uns pobres duns instrumentos musicais a que deitam a unha e desfilam o seu barulho incapaz de deixar qualquer rastro, a menor inflexão ou arrepio, fazem barulho porque é essa a única resposta que lhes chega da imaginação, uma vez que neles esta se reduziu a isto: fazerem-se carraças dos cemitérios literários para depois virem exigir que os críticos digam alguma coisa dos seus vestidinhos cheios de folhos. Não, Luís França, não te pagamos para fazeres desta febre héctica outro modo de andar aí a lamber o próprio reflexo nas montras.

 

terça-feira, junho 25, 2024


Ok,
e como esperas fazer sentido disto?,
talvez, se te disser como ando, onde,
outro paraíso de postal, mas a noite dói 
como em qualquer espelunca, 
as vistas dão-nos cabo da paciência,
a agitação e a música cada vez mais gratuita,
aqueles que parecem suspensos por fios
dançam sem qualquer temor,
nunca se despenharam, nem desconfiam
dessa fúria que escava em nós um vício,
recuados, ao fundo, toda essa infantaria 
desmobilizada, homens desfeitos
a segurar um copo com um grande esforço 
para não ruírem de vez, um pequeno quadro
na parede mostra um dorso branco
à superfície de águas tão sujas,
não parece haver nenhum lugar
para onde ir, nenhuma viagem
que pudesse mudar o estado das coisas,
até a beleza se tornou inconveniente,
assediando todos esses que não têm
nada melhor para fazer, fatalmente
chega esta idade em que os olhos
apenas exprimem o desejo de desertar,
fugir à primeira, se aqueles que dizem
que te amam não tiverem à mão 
pregos suficientes, se a culpa e o remorso
não fizerem a sua parte, em menos de nada
lá vais tu de mãos nos bolsos à boleia
de um assobio, convencido como dantes
que as tardes e as estradas ainda fazem
o que sempre fizeram, quem dera
se alguma buzina soasse a convocar-nos,
e houvessem rostos que nos buscam,
aquele sinal de reconhecimento,
estávamos radiantes por nos verem
como uns inúteis, e que paciência incrível 
tínhamos então para os disparates uns
dos outros, os delírios, todos esses sonhos
que iriam dar cabo deste mundo.


segunda-feira, junho 24, 2024

Um espaço empenhado na conquista de posições do lado da crítica literária

 


Relatório da Noite: https://relatorio-noite.blogspot.com/

Alguns exemplos

Sobre Elisabete Marques: https://relatorio-noite.blogspot.com/2024/06/os-dedos-em-redor-do-lume-passagens-de.html

Sobre João Miguel Fernandes Jorge: https://relatorio-noite.blogspot.com/2024/06/joao-miguel-fernandes-jorge-todo-o.html

Sobre Luís Filipe Parrado: https://relatorio-noite.blogspot.com/2023/11/luis-filipe-parrado-uma-questao-de.html

Sobre Cormac McCarthy: https://relatorio-noite.blogspot.com/2023/09/cormac-mccarthy-o-trabalho-de-fazer.html



Devo ter batido já um deserto inteiro
à máquina, cada grão uma sílaba, 
e não vejo o fim disto, 
nenhum eco me trouxe o que buscava,
e hoje seria uma ofensa se um
o tentasse. Tenho quase quarenta 
e os pulmões cheios de musgo.
Quem nos lê, vê-nos por aí entregues
aos restos mortais do impossível
a minoria de que fazemos parte, tu e eu,
uns poucos mais, esforçando o ritmo
para atingir o âmago, tentando fazer saltar
o reverso da vida. Mas para quê?
Seguimos para o funeral de outro de nós,
alguém que puxou a sua rede um pouco
mais cedo. Agora o gato dele terá de ficar
uns dias em tua casa, mas descansa
está habituado a tudo isso, ele mesmo
se serve, habituado que está a perseguir
caça grossa, é discreto, gosta de riscar
equações nos muros e de dividir
a realidade com os pássaros,
aprecia também como te demoras
a lavar a loiça, os pratos alinhados,
esse sentido de ordem que antes levava 
alguns a viver de roda de um soneto.
Ficará de olho em ti na varanda,
enquanto acendes o cigarro e o deixas
nos lábios do tempo, ardendo a sós,
e há-de apreciar a tua colecção de garrafas 
com as suas diferentes medidas
de água da chuva, e essa vista sobre os telhados,
esses vasos com um pouco de terra e mais nada,
a pedra que parece fria e afinal sabe
desses ardores que sobrevivem à carne,
e recorda traços, gestos vivos, perfis intactos
após três mil anos, o mesmo terror
diante dessa esquiva graça, e se uns
se desgraçam perseguindo formas,
outros perderam o juízo entre murmúrios, 
e parecem alimentar-se de sons,
devorando as intimidades do idioma.
Talvez isto possa ser o suficiente.


terça-feira, junho 18, 2024


Neste ínfimo país apenas reconheces
as distâncias implacáveis,
os corpos e o cansaço,
a estranheza que se entranha
até só o escuro poder transmitir-nos
alguma calma.
Gostaríamos de esquecê-lo e por isso
tantos fizemos da noite um hábito imperioso.
Serve-te do isqueiro para ir soletrando
provando o espaço como quem bebe
goles de chá, cerveja se preferires,
sê indelicado, se te apetecer, 
no fim, a realidade mostra o seu nojo
por aquilo que dizemos.
Antes tínhamos o perdão dos substantivos,
a textura e o tumulto de impressões raras, 
nomes intrusos, e a resina
de umas poucas imagens, o balanço
das ondas a voz trabalhada pelo sal.
Hoje raspamos o que de um anjo sobrou
para a canção, essa ferrugem
de uma espécie aguardando algo mais
de outra, e logo damos pela falta
do mundo,
ainda que o não soubéssemos explicar
nem vender a estranhos.
A dor ensina a encher um copo de cada vez
e a bebê-lo como quem toca um instrumento,
e depois tombas melodioso por aí.
É difícil segurar-se e persistir
tão à flor de nervos desarmados,
saber de si nesta língua de farrapos,
a rebentar de ecos, roncos, entre tantos 
remoinhos, regressos a outras idades,
as misturas, e os estragos que isso faz num homem,
a consciência zunindo com um gosto
a tempestade,
e mesmo desconfiando da própria respiração,
vemos o que nos resta com toda a força,
as evidências extraordinárias do que se abate
contra nós,
e se escrevemos é na ânsia
de dar ordens ao tempo,
humedecer-lhe os lábios, deslizar
entre essas formas leves esse modo
de evadir-se, que deixa aos versos
aquele tremor das grandes migrações.


domingo, junho 16, 2024


A garrafa roda para cá e para lá 
como se estivéssemos no mar, e diz-me
que ainda temos tempo, não tirei nada
das paredes, o primeiro dia ainda se ouve 
daqui, eu gosto de o ter à minha volta…
Trazes uns girassóis para dentro,
e se estes podem ter achado deplorável
o quarto, ajudam a compô-lo,
emprestam-lhe uma graça desvairada
e duram quase até ao verão seguinte
antes de morrerem, e mesmo então
riem-se desgraçadamente 
deixam-nos esse rasto ainda vivo.
Como seres queimados pela espera,
ensinaram-me a importância do calor,
de um detalhe, o teu gancho no lavatório
a torneira pingando num ritmo
que acabou por se tornar hereditário,
estes hábitos a que me agarro
sempre que regresso à superfície.
Se antes sabia desenhar, não perdi tudo
e a obsessão hoje são os peixes,
reflexos à tona de águas pouco profundas,
e ainda temos o sol, que se mete em tudo,
seca-nos o verso tão cedo que este
acaba por soar precipitado, outras vezes
agarra-nos, atravessa-nos
sacode-nos se somos frívolos, falsos,
não se impressiona com quase nada
ainda que não se canse de ver os miúdos 
quando fodem, fazendo-se de tudo, 
aquilo sim, diz ele, as coisas que se fazem
sem necessidade de mostrar, é quase
tudo o que resta, a única coisa que importa.


terça-feira, junho 11, 2024


Vê-se o mar da cama, e à volta
os sinais de uma vida descuidada
deixando cair o copo
da mão e a boca ou o olhar tentando
prender um gosto, a janela aberta
a paisagem bêbeda, as aves
buscando repouso no rigor da sua grafia,
a terra ancorada fundo, e a casa
decrépita discutindo com o vento,
a certas horas é o mar que soa
como uma velha gravação,
e as águas já nem se defendem
do seu único afogado.
A luz não cumpre horários, vem
vagueando à superfície meio ausente 
e o mundo mostra sinais de se acabar.
Por estes dias todo o fogo se dirige
para as memórias,
não temos mais nomes,
mas ainda nos socorrem estranhos
usos para a carne, imitamos
os cuidados daqueles que do escuro
arrancavam novas formas
conservando alguma flor por dias
na garganta,
que ao apodrecer lhes adoçava a voz
e assim tudo diziam melhor
caçando impressões, sons desconhecidos
cada reflexo perdido
até que a mudança acabasse arruinando
tudo, salvo a Beleza, que se acha
sempre sozinha.
É preciso empurrar para os bosques,
perder-se de ouvido num tumulto 
que te comove tanto,
mais que o mundo antigo.
Éramos poucos, quase raros,
e a vida exigia-nos tanto, 
atravessávamos os sonhos uns dos outros,
a boca murmurando cada gesto,
e talvez disso ainda me reste um eco
o dela vindo à frente dispondo
a sombra fresca,
prenhe do que lhe apetecesse
e depois de a ter, livre de mim
eu juntando o pó que seríamos
numa linha só,
e a meio escondia uma semente negra,
das que cantam, no bolso
e já deste lado deixo-a num pires
a tremer junto de um pouco de água
que não pode defender-se dessa sede.
Bebe-a, quebra-o e move-se
sobre as estantes, atravessando as folhas,
absorvendo dos livros a tinta
e o delírio, lendo o que quer
e quanto quer, cada ramo florescendo
no desejo de levar algum gesto até ao fim.


quinta-feira, junho 06, 2024


Pelo pátio espalha-se a poeira,
mal se escutam as passadas ofegantes,
pouca coisa tem a dizer-nos este tempo,
as grandes lições os triunfos
a sabedoria que mais nos comove
os sussurros da seda, as melhores vozes
tudo o que vibrou e deu gosto aos dias
está por aí enterrado, nos textos,
e os amantes colhem toda a exuberância
no passado, os mais tumultuosos reflexos
ecos e até flores, os corpos dão-se
raspando o ouro para que se possa de novo
respirar, para que os milénios 
passem por nós e nos ofereçam o seu abalo.
Se somos velhos, essa paixão do que respirou
sobre a terra é o que fala ainda por nós,
uns goles de cerveja fresca e
vamos por aí ouvir histórias, dar-lhes
a nossa melhor atenção agora, por fim
contribuindo para as despesas
de algum funeral, e sim
toda esta gente fala mal da morte
e no entanto, digo eu, o que seria deles
que outra esperança sombra inquietante 
ou movimento, sendo eles
de tal modo incapazes de gestos vitais
de produzir abalos ou
de exercer o seu juízo de forma fantástica 
cruel também, que lhes restaria?,
pergunto-me, se não fosse a compaixão 
que os arrasta para dentro da terra
e os devolve ao pó, 
se ela não se ocupasse deles,
incapazes de obras ou de um sincero
fascínio restariam por aí
esquecidos de si próprios, sem esse
gesto terrífico mas afinal doce
e compreensivo, sem essa última
dignidade, alimentando a necessidade 
da recordação, libertando essa música 
a desses fantasmas que ainda
nos falam, perguntando pelos gestos
de que vivemos suspensos
essa trama íntima sacudida assim
do seu estupor, e então, dancemos
pois de tudo quanto ela nos tira
é disso precisamente que o ritmo renasce,
e num tempo tão desolado como este
ninguém já sabe esconder
essa súbita e estranha alegria
sempre que algum ramo se quebra
sendo claro como a morte
é bem capaz de ser a única coisa
que temos ainda a nosso favor.



terça-feira, junho 04, 2024


Com Fernández Retamar

Fiz as malas, levo daqui os dentes
que me importam, a lembrança de tudo
quanto me mordeu, também os sons
esses murmúrios persistentes
conheço a raiz que firmaram os mortos
insaciáveis e gulosos, vigiando a luz
e outras presas, com o tempo
eu mesmo refiz o sangue,
integrei os ruídos e o som de pássaros 
trago tudo num abalo contínuo,
e de tantas frases riscadas tenho aí 
um bosque, rugidos absurdos,
posso ouvir os rouxinóis metidos na gaveta
de cada um, subi os rios
bebendo águas claras com um som
que se intrometia nas veias
essas amadas estruturas daqueles
que se resguardam em tão poucas linhas
com a sua lealdade eterna às coisas ásperas,
armando a partir de ninharias
essa ave que não perde jamais
a sua vida.
Estes sabem dispor secretamente
as intimidades da paisagem
no seu exacto lugar.
Fiz as malas e saí, arrastando tudo,
mas não encontrava a noite, o seu timbre,
essa pura distância com estrelas,
os barcos, o vidro e os reflexos,
as canções de que apenas nos chegam
uns restos, essa noite levantada outra vez
como uma torre, um tremor, tudo
o que oferece luta antes de por fim
se entregar, rendido mais à amargura
do que ao prazer,
e gostando por isso dos homens
e acima de tudo destes
que não fazem outra coisa senão contá-lo,
apegando-se dolorosa, terrivelmente
à vida e às coisas.


domingo, junho 02, 2024


Tenho na verdade o corpo dócil, dizes
mas tão agreste, veloz que quebras
voraz que transformas a arte
em gesto ou carne e dizes mais
que esperas, esperas os sinais da minha existência
com pouca paciência para o que eu
tenho morrido por aí, o que gosto ou o que me é
mais fácil, tu beijas o outro lado
colhes entre os dedos essa água 
viva de absurdos reflexos
um céu que passa e forma a partir
da sua imensa fome um mundo e outro
além, numa alegria de improviso,
num modo incansável de se dizer, como dizes tu,
como faz há muito o mar, teu primeiro 
e último animal de estimação


terça-feira, maio 21, 2024


Ninguém teria o cuidado de juntar
o pó do que fomos se houvesse tempo,
se as mãos pudessem resistir
depois do tempo se tornar outra doença,
passo a língua entre o vazio e estes mesmos 
dentes, cada frase cede diante da dispersão 
e à medida que a voz se perde.
A memória de nada nos serve,
já não é capaz daquela selvagem
suspensão, de segurar a corrente ou a luz
nesse gesto vago com que nos apropriávamos 
de tudo, arrastando os astros
reflectidos na água.
Estamos fracos para o ritmo e as visões 
que nos davam a posse momentânea 
e o gozo deste mundo.
Hoje o absurdo prevalece, o idioma
mal se toca, ou roça as partes sensíveis
da matéria, e chegam a passar-se anos
sem que uma só frase venha
respirar à superfície, tome parte
desse rumor que se ouve à flor
dos caminhos.
Resta-nos abrir fossos, salgar o chão 
dizer pouco, o mais breve rasto,
e pôr tudo num resto, fazer a guerra
num detalhe,
assim achamos os venenos mais íntimos
dos homens,
as sombras distraem-se em outras
latitudes, mas deste lado tudo parece 
quebrado, frio.
Se outros lavam a boca, nós 
preferimo-las sujas, o gosto revoltante
de um beijo e assim
voltamos ao embalo e à espuma
dos dias que nos querem,
sabão, cerveja, mar,
essa canção que trazemos dentro
como ossos e sangue,
buscando o infinito na carne.
É um modo de dizer, de o repetir
de rasgar os últimos sinais e decorar
a ausência, dispor os versos como ruínas
e poeira junto dessas plantas secas
firmando a névoa, e de invocar o desejo
quando este se tornou a mais rara
e a mais perturbadora das distâncias.


quarta-feira, abril 24, 2024


Existiam mundos, diz-me ele,
infinitamente vastos e povoados
e podem ainda espreitar-se por vezes
num tremor de água fria, ouve-se
o choro de antigas culturas 
depois do frio e do medo 
ascende o fogo entrecortado, as mãos 
crescem entre reflexos
regressa a mesma doçura às tuas
mãos inconscientes
e sobre a mesa essa aspa,
seta amadurecida na carne de outro,
alguns objectos fazem-se selvagens
pelo uso que lhes damos,
por isso só peço o tédio 
de modo a alcançar a simplicidade
que nos faz tremer diante de nós próprios
nem há espelho que copie
certos traços, cicatrizes que conservam
o mesmo brilho que se crava na pupila
e tens por sorte essa dor que faz de ti um
bicho atento, bebendo
o rastro da lua nas ervas, escutas 
os ritmos das aranhas ébrias
restituindo uma luz secreta à vida,
as lascas de mármore, tudo se converte
em osso, e eu também estou
entre os que se perguntam
como e quando, não peço já 
essas flores comedoras de antigos sóis 
mas um gole de água fresca
os passos daqueles que atravessam
essas noites feridas por mil vozes
e recordam as canções de água salgada
que inspiravam Lezama Lima
do resto falarão os anjos