sexta-feira, novembro 03, 2023


Eu devia jogar esta noite, fosse
no que fosse, sinto no sangue uma tal
adesão à vida, mas não quero apostar
num número e com o sentido torna-se
impossível, o gosto de certas noções
é o suficiente para nos dar cabo da vida,
não se aguenta a vulgaridade
daquilo que emerge pouco depois,
e assim vamos vivendo de recortes, 
cada um com os dedos sujos
de apertar contra si o que lhe aparece,
e um tipo interroga-se sobre que coisas 
realmente estão ao seu alcance,
esse rastro íntimo de que vimos
e que um dia mais tarde nos atinge
com todas essas zonas ainda selvagens, 
aquela lua que se trafica no auge
das palavras, o riso de quem fica
e gosta de saber das horas sentado
aos pés de um muro corroído pelo sol,
isto anima-o, a suave desordem da vida,
e junto ao ouvido diz-te tu
estás aqui pela bebida, bebe então 
o que puderes, e retoma
os aspectos perdidos, o nome que te leva,
as superfícies onde ainda podes
raspar os lábios, perder a boca,
se for alguma coisa um poema pois
deve ser isso.


segunda-feira, outubro 30, 2023


Cedo rasguei o cordão que ia daqui
para o mundo, farejava o já vivido
e virava-lhe costas,
nesse ponto ilegível um murmúrio
escapou-me e houve algo cá dentro
que levantou a mão contra nós.
Perante a glacial indiferença dos astros,
vimos sombras tomar por nós o chá,
virá-lo sobre a carpete, tocavam-se
de forma estranha, despiam-se
e iam decorando de espinhos a casa.
Obrigados a espiá-las em silêncio,
vamos descosendo a insónia um do outro,
ferimo-nos e foi assim que ficaste a saber
as poucas coisas que importam,
desde logo como tudo quanto parece certo
esconde o que há de pior,
que os deuses preferem a treva
e que ninguém apaga a luz neste mundo
como o faz uma puta.
Abres-me a porta, atravessa-nos a sede,
procuramos o poço onde possamos beber
esse reflexo comum, e com a água
já detida na mão em concha 
parece que respiramos pela boca um do outro,
torna-se claro então porque dos amantes 
se diz que sofrem como condenados
sensíveis a cada ponto
à tensão da linha que os cose
de tal modo que de um lado ao outro
se ouve bater a noite inteira há um toque
de telefone impossível de atender
cada ruído se alonga como um suspiro 
range interiormente, soa na própria fibra
no mais fundo da matéria
como uma espécie de música letal.


quinta-feira, outubro 26, 2023


A rua que nos resta não se deixa abater
nem pela falta de exemplos ou sinais
senhas entre quem vai e vem deixando
claro que querem a vida de volta
a superfície riscada de tantos ensaios 
e as notas desarrumadas, as badaladas
recordando torres desfeitas o relógio
engolido pelas raízes em geral
ligadas a um grito, tudo já depois
de interrogar deuses e fantasmas,
e torturar alguns, então com as unhas
arrancadas, tomado pela exaltação 
foi preciso abrir o relâmpago detê-lo
sobre a mesa e saber em que águas
se afundou, como o fôlego se tornou curto
e depois de tanto traçar vincos no escuro
fomos extraindo dele o único sol
soprámos nas mãos criando uma lâmpada
na sucessão de imagens os estilhaços
do astro que se perdeu tremiam
espalhados pelo chão ainda vivos
sombras variáveis em mapas terrestres,
e o assombro com que nos debruçávamos
para essas noites umas dentro das outras
onde o corpo já se acabara e as flores
infiltravam o quadro eléctrico 
a região aqueceu, a luz propagou-se
nos vidros em tantos reflexos,
o rosto alastrado e os restos de mármore
onde se adivinhava outra expressão,
para regressar por fim à doce miséria
do quarto, entre as sobras, marcas
de uso e desgaste, um caroço em tumulto,
a aranha esmagada e o batom,
esta maré baixa em redor, espuma, saliva,
esperma, e o gozo de ficar ali no meio
a dar-se como culpado, sorrindo.


segunda-feira, outubro 09, 2023



A descrição vive do tanto que à morte escapa,
como o ritmo das vagas a propagar-se
debaixo da terra, ou os sinos
que a revolvem, os girassóis carbonizados
que tremem no interior das gavetas,
os caroços perfumados com que os gestos 
enfim aprendem a desfazer o tempo,
como os olhos se perdem de vez
e tudo resiste como quer,
o mundo surge desfasado de si
as coisas tornam-se presas do mesmo
movimento doloroso,
a água do fosso não consegue livrar-se
de uma ruga de expressão 
ou da antiga noite que nela se reflecte
vertebrada pelo brilho alucinado
das constelações, 
a respiração é arrastada por um eco
que não reconhece a sua origem,
a rua que nos resta parece incapaz
de nos levar daqui,
temos a mesa aonde tudo regressa onde
a chávena depois da tua boca gosta
do vazio, onde nos estudámos tanto
fizemos o que o desejo pediu e depois
para nos magoarmos
sem abrir mão da doçura falámos de corpos, 
de redes esquecidas no leito
de outros rios, a alegria de jogar sujo
enquanto copiamos para a pele um
do outro as mesmas cicatrizes,
e todos os adeuses, causas perdidas,
nomes por entre os quais a nossa voz
veio a parecer-se intimamente com o vento
libertando-nos de algum sabor obsessivo,
à vez iluminamos o fundo para que o outro
extraia algum detalhe, pintamos e
transpomos para as paredes 
cenas vivas dos últimos dez mil anos,
alinhamos os frascos por onde vai a procissão 
do murmúrio que sobrou,
o último pirilampo antes do fósforo,
um dedo de Safo, uma pétala de Emily 
Dickinson, as vísceras da ave
onde Rimbaud leu o seu destino,
a borboleta irisada que Nabokov compôs,
a última beata a arder ao canto da boca
de Dylan Thomas, e o luto
dos séculos seguintes
enquanto o poema perdia a sua vocação,
esse contrabando a favor dos que cosem
na bainha das línguas o esplendor
dessa memória comum,
signos que trazem ao leitor os frutos
de uma intimidade indevassável
e que a morte não sabe ler.


quinta-feira, outubro 05, 2023



A tua hora assobia no corredor,
reviras a caixa de sapatos
as imagens os rostos que se vão perdendo
até já não sermos capazes de pousar
o olhar em mais ninguém,
os nomes que ficam a segurar a ausência 
os lugares ansiando outras conversas
um monte de ervas amargas
e que não consigo arrancar, tudo
sem que os nós ao longo do fio
cheguem para contar alguma história.
O firmamento vai caindo aos poucos
por trás da casa, não sei
explicar como os céus se quebram,
fica escuro tão depressa, logo
alguém reza a teu lado e não percebes
metade do que diz, que traço de água
e luz poderia fazer algum sentido disto
a raridade do prazer que procuramos de noite
a doce passada dessas noites incompletas
quando os corpos na sua lenta rotação
por vezes se tocam, falam entre si
sem se perceber o sexo e nem
que espécie de intimidade é aquela
cheia de hesitações e atrasos
da distância e do fascínio que os governa
e nos alcança e corrompe,
a sensação de que do desejo já viram tudo,
e de que o amor não lhes serve de nada,
as sombras que despem, os nomes 
com que seguram a própria ausência 
o caos afinando cada instrumento, 
entontecidos de música cambaleiam
como se flutuassem entre as sobras
de um mundo que se esquiva,
sigo-os e fica-me o dedo escuro
da obsessão dos círculos, das curvas,
do desenho, a linha quente onde tudo
por fim se despenhou


quinta-feira, setembro 28, 2023


Há outro género de amantes
entre flor e fulgor, lançam o corpo como cartas
marcadas, jogam a dinheiro,
pois há sempre quem pague o gosto adocicado
da carne humana nas diferentes luas,
os que o perderam, que não são já capazes
desse gozo e integridade
a luz que vem da reserva íntima
quando o cansaço se torna um perfume,
depois de verem estreitar-se os céus
sem se levantarem da cama, olhe
se lhe apetecer, entre se quiser
mas feche a porta, por favor 
o frio nem é tão mau mas o ruído 
dormimos junto à estação contando
os comboios que se vão ligando
neste sonho crucial,
temos um horário para os nossos ecos
e o pó ébrio que se levanta transpondo
o pretérito perfeito,
nalguns gestos repetimos a vida
daqueles que uma e outra vez são vencidos 
apesar das histórias que se contam mais
tarde, por defenderem as coisas sagradas
e alimentam o terror tão belos como vão 
levados à corda
e como dos seus corpos suspensos 
nasce depois esse silêncio admirável 
que o comércio na manhã seguinte ignora 
mesmo a noite parece um acontecimento longínquo
quase impronunciável,
só quem aguenta esses pontos que absorvem numa hora
uma vida inteira as infinitas
correspondências o peso da luz somada
se deixa ficar, 
atravessados no ferido som de um raro
encanto
os traficantes do eterno condenam-se à penúria,
mas quando morrem levam o mundo,
sem se denunciarem, por fios enferrujados
e soa enfim essa beleza entre os que escutam
mas são incapazes de dizer sobre isso
uma palavra que seja


segunda-feira, setembro 25, 2023


Os deuses morrem à nossa volta, nem se despedem,
saem desfeitos e tudo o que tocaram
assume um ar perdido, a memória desagrega-se
mas ficam certas visões, a paisagem desarrumada
vamos pisando a luz vidrada e soam
notas espantosas, o chão respira
com os nossos passos, com o gozo
de um certo descuido, agora já podemos
romper tudo, provocar a vida caminhando
por essa tempestade de sugestões 
nem um sussurro nos escapa e há sempre
aquele fragmento que nos rasga a carne
o vento esbarra nalguma torre cantante
e da boca de quem dorme ainda ao nosso lado
ao amanhecer escutas uma frase prodigiosa
e esse rapto esse momento de glória diz-nos
como o maior talento é a confiança em tudo
deixar-se arrastar pela corrente e sobretudo
se é forte, por mais brusca que seja,
cair sob o efeito dessa beleza absurda
da volta que te dá, como te revira,
tudo aquilo que se ouve e nos sacode
e nos foge, sendo óbvio que nenhum assombro
neste mundo seria feito para durar, mas o mundo
segura o fôlego, cada pensamento ou gesto
corta o anterior como uma lâmina e
é na cabeça que se dão os maiores abalos, 
passam por nós as feras como sombras
no espelho, e na sua pelagem escura
a cor das estrelas vai deixando reflexos,
então sentimos como um tremor no sangue
essa alegre desordem dentro de nós, 
e acata por isso o conselho desse pintor
que embriagava o próprio grito
e vinha por aí depois do trabalho 
com aquela largueza e os excessos
de abrir e desemperrar o espaço nas telas.
A técnica cheira primeiro a suor e logo
vem até nós o perfume das bestas reunidas
do outro lado da fronteira,
pois assim pergunta-te quem quis
mexer com os elementos,
comer dessas uvas sem semente,
feitas de espuma do mar,
quem se atreve a manter o curso
quando a ressaca toma conta dos nervos,
e um custo impossível ameaça cair sobre nós,
quem se recusa a voltar para os navios
enterrando-se mais fundo no terror virgem
do mundo, como o pobre do velho,
Homero, cego e talvez por isso tão confiante,
cada passo dado sobre um possível abismo,
treinando o ouvido, apurando-o
nesse murmúrio de vozes tão antigas
como os grandes cursos de água 
parecendo deter o balanço firme e o ritmo
capazes de descoser o fio entre a vida e a morte,
andar de uma para a outra, encher-se
de sentenças, noções bravias, tomar o pulso
do que só pode ser meio murmurado e
imperfeitamente ouvido, mover-se por aí 
como um deus no seu último dia,
passando a mão por entre as vinhas
que crescem em seu louvor, mordendo
os bagos cheios com que alimentou
leopardos e outros felinos que tanto amou, 
colhendo inspiração para a derradeira praga,
até dar-se conta de que o pior
seria recusar-lhes o hálito e as coisas que diz
nesse seu cuidado de as entregar
a uma densa e estranha espécie de música.


sexta-feira, setembro 22, 2023

Os alarves do lirismo

 

Não parece haver modo de se chegar a vias de facto por aqui. E, no entanto, não seria melhor se tomar partido por alguma causa, algum dos lados numa contenda, comportasse algum nível de sacrifício, certo grau de moléstia, e que nos deixasse marcas mais ou menos profundas, encorajando-nos a pesar bem cada frase antes de desferir o seu golpe fosse em que sentido fosse? De resto, o agressor sabe que, mais tarde ou mais cedo, o agredido será ele, e que qualquer palavra que pronuncie poderá ser invocada contra si. Mas esse deveria ser precisamente o risco que mais nos incita. Produzir ecos capazes de se autonomizarem e de, mais tarde, se voltarem contra nós. Mais até do que uma vontade de se mostrar invulnerável, há essa noção de que o perigo maior é dar por si engavetado, ou proposto a essa circulação dos textos que se limitam a executar disposições testamentárias legando certos aspectos estilísticos e temáticos à geração seguinte, mas que, no fundo, não aquecem nem arrefecem. Mais do que qualquer outro desses propósitos referidos pela maioria dos escritores, o desejo de ser infame é algo que se mostra hoje mais necessário do que nunca, até para fazer ver aos demais a ingenuidade de quem se abalança nestas lides presumindo que se trata de uma ocupação da qual se pode entrar e sair incólume. O desastre maior da nossa época é essa presunção da inconsequência das coisas que se dizem ou escrevem. É natural que nos provoque irritação a atitude leviana com que tantos se propõem publicar sem anteciparem como isso significa estender um convite para um embate decisivo. Bataille deixou claro que “um homem difere de um animal no facto de certas sensações o ferirem e o liquidarem no mais íntimo”, mas desde então foi-se tornando comum uma compreensão do campo literário como mais outra atracção inócua, turística, onde as grandes obras se organizam como monumentos a serem rodeados nesse afã dos que andam aos magotes e pretendem assumir sobre elas algum título, como se fossem consumíveis, pudessem ser apropriadas e esgotadas, e é assim que, nos nossos dias, essas moles de aspirantes, que se lançam a tudo sem nenhuma consideração pelo nível de exigência que cobra cada disciplina, e sem o menor receio de serem tomados por imbecis, presumem que a poesia pode albergar e estimar os seus delírios, e desde logo chegam a ela pensando que poderão assim evitar todas as dificuldades dessa arte incrivelmente difícil que é a boa prosa ao quebrar a composição em versos às escadinhas. São normalmente certos agentes sindicais interessados em ver aumentar as suas fileiras e também o género de usurários que todos os dias encontram novas formas de engrolar este género de pacóvios quem mais alimenta essas ilusões de que arte pode funcionar como uma agência para os troca-tintas do ego, sendo que qualquer leitor com algum discernimento consegue dar-se conta da superficialidade dessa investida. A este respeito, Ezra Pound deixou um aviso essencial: “Não pense que a arte da poesia é de algum modo mais simples que a arte da música, ou que pensa agradar ao especialista antes de fazer pelo menos tanto esforço na arte do verso como o vulgar professor de piano gasta na arte da música…” E adianta ainda que, se o cientista não espera ser aclamado como um grande cientista até ter descoberto alguma coisa, isso obriga-o a começar por aprender o que já foi descoberto, e só desse ponto poderá partir para o esforço de impor algo de novo. É natural que os do nosso tempo, estes que estão sempre de malas feitas distribuídos pelas paragens à espera de um lugar no autocarro da posteridade, detestem a figura do crítico, aquele que segundo Benjamin encara o seu papel como o de um “estratega do combate literário”. É que o crítico, como este o entende, “não tem nada que ver com o exegeta de épocas passadas”. Não está aí para firmar valores, não é um mero pica numa dessas composições. “A posteridade esquece ou louva”, lembra o ensaísta alemão, já o crítico “julga face a face com o autor". Não tenta interpretar os humores da eternidade. Todos os lugares lhe são presentes, ele está lançado na ventura, e vê-se de algum modo sempre como o desertor de algum passado, sempre cobiçoso de um porvir que ele mesmo admitirá que, se chegasse, logo o desiludiria. São detestáveis estes escritores e poetas dos nossos dias que procuram por todos os meios esquivar-se a um agreste confronto de posições. Podemos citar—lhes todos os autores que dizem que admiram, podemos retirá-los dessas posições ridículas em que os enterram, e mesmo assim fingem que não é nada com eles. No entender de Eduardo Prado Coelho, a categoria que se deveria aplicar a este tipo de pessoas é a da canalha. "Em que sentido? Para designar uma modalidade de seres que substituíram todo o desejo pelo empolamento de si próprios e que vivem numa Realidade acolchoada, alheia a qualquer pressão do Real e revestida de um princípio de morte." Agora vêm aí uns quantos numa dessas edições patrocinadas pelas autarquias como sempre convém, vêm soprar as cem velas sobre esse cadáver que teve a culpa de deixar que fizessem dele quando ainda era vivo um bolo para os repastos ignaros desta gente que da cultura faz sempre algum regime de conveniência, uma gente que não tem consciência nem do tempo nem de nada, organizando-se sempre de modo a nunca ficarem excluídos das delícias orçamentais. Ora, muitos destes aproveitam-se agora do centenário de Eduardo Lourenço para continuar a cortar o bolo agora sobre a campa, e é claro que, em lugar de uma antologia num espírito minimamente fora-da-lei, estendendo uma teia que fosse complexa, agressiva, ou mesmo delicada, de uma audácia tranquilamente grega, limitam-se a vir-nos com outro conluio dessas mesmas aves cuja vida se restringe aos cemitérios. E aqui repetiria as palavras dele, estando certo que farão como ele diz… “Nós criticamo-los mas eles usam uma estratégia que sempre deu resultado, enquanto deu resultado: aparecem, reclamam-se, juntam-se, parecem todos e são só alguns. A coisa literária, aliás, não lhes interessa mesmo mais e nisso são coerentes.” Bem que podiam ler a correspondência dele com Jorge de Sena, mas ainda que o fizessem nunca se deixariam salpicar pelo infrene tom acusatório daquele magro volume, onde o autor de Exorcismos dizia ao outro que não tinha como se contentar com a perspectiva de só ter para convívio um bando de idiotas competentes naquilo que ensinam, pesquisam ou julgam que criam, “mas para os quais a cultura e os seus problemas nada têm de vital, a não ser na medida em que afectem os interessem do seu pão quotidiano”. Enjoados os dois de mediocridade e de mediania gloriosa, se assumiram posturas bem diversas no confronto com este reino desolado que, a par de tudo o que o degrada, tem ainda de suportar esse regime de festa permanente que distingue os que sempre vão envergando solenemente as senhas devidas à cultura como um bando de abutres, não discordavam na substância do diagnóstico. E, assim, o que concluía Eduardo Lourenço sobre este ambiente de sufocação em que nos vemos imersos? “Estamos condenados de geração em geração a passarmos uns aos outros o ‘isto dá vontade de morrer’.” Mas que isto não vos incomode. Vamos lá ver que editor está em condições de ir sacar mais uns cobres e reunir outra dessas mostras de alarves do lirismo. Evidentemente, nenhum deles se sentirá ferido no seu íntimo por este ataque ou por outro qualquer. De resto, se há coisa que vai distinguindo estes do nosso tempo, é precisamente a forma como se comportam como os enxames de gafanhotos da escrita que Benjamin supôs que em breve viriam a encobrir o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades. É uma chusma de gente que anda por aí a reclamar-se do título de autores, mas para quem as palavras não têm peso nem sabor, e descem sem memória aos textos, sem drama nem intriga, organizados por esses chefes de fila cuja única lei que respeitam é a simultânea invenção de esquemas e velhacarias para se irem governando enquanto o fedor alastra. E quanto ao crítico, a receita passa sempre por ignorar e desconsiderá-lo, vir levantar suspeitas sobre as suas verdadeiras intenções, descrevê-lo como um canalha, como se isso por si só abalasse a firmeza dos seus argumentos, como se lhe fosse impossível defender realmente uma causa e ser pródigo nos exageros burlescos, como se essas quixotescas e até por vezes aberrantes actividades de polemista, afinando uma arte de injuriar, não fosse hoje a única saída, o género literário por excelência num tempo em que, no geral, todos admitem que, salvo raríssimas excepções (eles próprios e osamigos), vivemos cercados de sacripantas e imbecis, mas isto só enquanto a acusação se mantiver num plano abstracto, sem se tornar punível ao particularizar. Mas é então que fica claro como se sente frágil o nosso regime cultural, apesar de tão poucas serem as vozes que se marimbam no prestígio e escavam as suas trincheiras do lado da infâmia, com a impetuosa e subversiva violência que realmente faz mossa, pois de outro modo, como esclarece Sena, “este ecumenismo todo das várias igrejas não surgiria se elas se sentissem fortes: a unidade delas vem de sentirem a freguesia a fugir”. Ora, nos nossos dias o facto de estarem montados sobre os orçamentos camarários, sobre essas côdeas que ainda são dispensadas aos coitos académicos, diz-nos que a freguesia já desertou inteiramente. E por isso vão triunfando as Margaridas, os Eiras e outros que vão à boleia, e fazem por ingressar no mesmo lote (pun intended), todos esses que podem estender nos seus versos aquele cheiro de sala de aula e de associação de estudantes. Persiste assim essa paradisíaca piolheira, com os seus casamentos entre o céu e o inferno, como “enxertos de sacristia católica, sem nível teológico algum” (Sena). Todos sabem que este regime de folia está perto do fim, que esta ordinarizada comédia que vive de impor os seus valores segundo flutuações acríticas e desonestidades de toda a ordem tem os dias contados. A própria Universidade com esses seus programa abandalhados, com todo o seu bafio, as suas hierarquias degradantes, as práticas endogâmicas, todas essas intrujices que dão conta dos concursos, e que garantem que ali não se promove outra coisa além de uma “sociedade das prostitutas que não fariam vida na rua – como autores” (Sena, uma vez mais), é um sistema que a breve trecho não terá sequer meios para custear toda essa coloquiagem e as edições grotescamente subvencionadas que ninguém se dá ao trabalho de ler. E com este esquema em breve estará posta em causa todo esse modelo de inflação caseira dos talentos que temos espalhados por cada género, e depois vamos rir-nos todos com as aflições dessas “ratazanas académicas” (na justíssima expressão de Eduardo Lourenço) quando não mais lhes forem confiados esses meios para a divulgação de certas obras e autores, e isto quando nunca conseguiram ultrapassar “a glosa banalmente historicista ou apologética, sem alcance espiritual verdadeiro”, de tal modo que temos todo um aparelho burocrático montado sobre a ideia de posteridade que acabará por ruir, deixando muito claro que não fazia falta nenhuma, pois significava apenas que durante demasiado tempo fomos obrigados a “suportar o odor dos coveiros que o acaso de privilégios sem conteúdo transformou em estetas”.


 

quarta-feira, setembro 20, 2023


No final ferido de tudo o que nos suplica 
alguma continuação,
só te resta dilatar a sua sabedora agonia
na ternura progressiva dos teus passos,
a volta em que se cumpre o que és,
entre glaciares, penhascos retorcidos
pedregulhos e ervas daninhas, 
margens sensuais canoras, a sábia indolência
com que uniste as partes dispersas dessa consciência,
o aspecto da água
resistindo a reflectir seja o que for
traz à superfície imagens novas
por meio dessa invenção gradual,
o sal, os dedos demorados num tremor, 
soberbos restos de navios
que atravessaram a morte com sua luz tão frágil,
do mesmo modo as estrelas vincam o espaço
e há flores capazes de conter a noite inteira,
um perfume chega a soar como um concerto 
e podemos então fechar os olhos,
seguir nomes que não os nossos
até quartos onde nunca entrámos,
e ali provamos esse gosto íntimo
que tanto invejámos olhando a vida de longe,
logo chega até nós a convulsa memória
das coisas que nos aguardam,
arrancamos as ervas de tantos volumes,
a nossa letra deixa-se recortar
entre climas diversos
entrelaçada no esqueleto paciente
de homens em quem o sol se pôs,
vemos o trigo que cresce
entre toda a carne
e esse eco que nos fez sentir desterrados.
Para levantar a moral algum de nós
entretém as questões mais absurdas,
geniais, insuportáveis:
E o mar que diria se ressuscitasse?
Sentimos as raízes revolverem o mundo
cá dentro, e agarramo-nos
o melhor que podemos 
sendo certo que nada há de mais próximo
que uma canção, 
ou a sensação de a ver acender um cigarro
nalgum desses fogos
que ateavam os antigos sonhos.
Para me compensar do seu silêncio
talhei um eco perfeito,
uma primavera movendo perseguição
aos detalhes e suaves semelhanças
em que ela se reconhecia,
e passava depois os dias deliciado
convencido de que a ouvia aproximar-se


Esse órgão ventoso da escrita


Que sobras de tudo isto hão-de acabar a compor alguma vitrine num museu? E terá sido sempre tudo tão frívolo como nos parece agora, a partir das selectas literárias e de todas essas funções de uma memória que relata de forma cada vez mais senil qualquer abertura alcançada por meio de um deslumbramento íntimo? Era esse o mapa em que interessava sujar o dedo seguindo um outro caminho. Lançados na presente desilusão, forçam-nos a fazer uma e outra vez estas perguntas aqueles que representam para si mesmos esse logro de uma nobreza que nunca se deixa iludir. Houve algum tempo melhor, algum eixo que tenha feito confluir esses seres remoídos por febres secretas, e que animavam um mito literário difuso, mas exaltante, estando pouco interessados em representar a elegância dos seus juízos, o acordo musical entre as suas ideias, a tal melodia intrínseca ao pensamento, preferindo ser tidos como maus escritores, e actuando mais como delinquentes no ensejo de se vingarem da cruel solenidade deste mundo? Nalgum momento, depois de longos anos de fastio, e contra esse entendimento comum, adquire-se um gosto raro, um anseio por vozes náufragas e resistentes, por seres cujo rastro no papel tem algo de imundo, e que, em lugar de composições equilibradas, parece que vão cuspindo pedaços de um órgão que tenta escapar ao destino. Aos poucos deixamos de ter tolerância para as composições mais educadas destes que pretendem apenas passar com distinção nas provas, e ser acolhidos no acomodado seio dos mestres. Na margem oposta há aqueles que sofrem de uma estranha doença de pele, que aprendem a viver com uma compulsão desastrosa. Há ainda um mito persistente e que nos empurra para o desacato, mesmo se tanta coisa se perde na transmissão, mesmo se não é possível ensinar coisa nenhuma, até porque “as palavras morrem ao trocarem de boca, a sorte gasta-se ao fornecer os dados” (Fondane). E se é doloroso reencontrar-se sempre com o desastre íntimo nesse esforço para atingir a espessura das coisas, um tipo sente-se encontrado ao encarar-se como num reflexo quando dá por algum desses que andam por aí “através do vómito sem fim do incurável, gritando para se ouvir gritar”. O temor da irrelevância encosta tantos a essa relação burocrática que vai desenhando flores nos muros brancos à nossa volta, e mesmo nesses muros que passam rente ao inferno ainda se pode ler as mesmas justificações imbecis, o mesmo intuito decorativo. Mas houve uma idade em que os fins eram o que menos importava, em que a própria ideia de uma literatura só estava connosco se a perseguíssemos, falando e escrevendo interminavelmente, prosseguindo um delírio dias a fio, e pela noite dentro, sem grande probabilidade de alcançar um contágio, mas gratos por haver ainda essa margem para agir o mais condenadamente possível, descobrindo se se tem ou não a capacidade de suportar o descalabro das paixões, e sair demasiadas vezes do outro lado de humilhações absurdas, envolver-se em ferozes discussões onde quer que seja, não havendo nada em jogo além da possibilidade de levar uma hipótese até ao limite do que a imaginação consegue aguentar. Contra os sistemas que defendem a ordem, o progresso, a moralidade, havia essa relação de forças apuradas no campo do desespero, sendo este a única garantia, pois não permite que em seu nome surjam comunidades estáveis nem nenhum desses condomínios cheios de repartições e de órgãos regulamentares e de serviços de inspecção. Na verdade, a literatura deve quase tudo ao despropósito. “Há na insolência uma rapidez de acção, uma orgulhosa espontaneidade que quebra os velhos mecanismos e que desdenha dos esquemas de legitimação, acabando por levar a melhor sobre um inimigo poderoso mas lento”, como disse alguém cujo nome perdi entre os papéis. Nada é mais desolador hoje do que ir à procura de algum café ou livraria onde pelas conversas ainda passe a sensação do mundo, não se dá por nenhum, por nada que não se fique pelas timidezes e avanços calculados de seres redundantes, que nos devolvem todo o assombro esfarelado, e a própria vida sujeita a noções intragáveis, a ponto de sentirmos o sangue a morder o vazio. E, no fim, essa deverá ser a maior das reservas ou até o argumento essencial que devemos opor à ideia do génio, isto na linha do que Benjamin assinalou na hora de impor uma objecção à forma de vida do celibatário: "ele toma as suas refeições sozinho [... e isto quando] só em comunidade se faz jus à comida; ela deve ser partida e repartida para fazer efeito. Sem olhar a quem: antigamente, um mendigo à mesa enriquecia qualquer refeição." Hoje entramos numa livraria como antes entrávamos numa loja de animais, dando por eles amontoados em gaiolas e celas enervantes. Entre eles codifica-se uma forma de expressão desgastada, bisonha, reduzida à parada mínima, e, se nutrem grandes aspirações, curiosamente isso mantém entre eles um pacto que conduz a um cinismo generalizado. Devemos reforçar a enorme diferença que vai entre essas lojas cheias de gaiolas pipilantes e as árvores que crescem para sustentar a diferentes níveis as selvagens filarmónicas de pássaros. Uma acidental ainda que justíssima descrição do nosso meio literário pode ser arrancada dos diários de Eduardo Prado Coelho, sendo que ali esta passagem se limitava a traçar um resumo das relações entre as personagens de um mau filme: "Ninguém é mau, todos são fracos, às vezes indecorosamente cobardes, e no entanto este carrossel libidinal vai rodando segundo uma lógica do vínculo afectivo, do medo da ruptura e do desejo de 'enganar' (mas é apenas uma miragem: ninguém engana ninguém, todos sabem tudo desde o princípio)." Vivemos devastados por essa ilusão de que os outros se deixam enganar, e sobretudo por essa necessidade de se iludirem a si mesmos. Não havia nenhum futuro para isto, e essa era a grande promessa que a literatura nos fazia. A de se ver investido num tempo ditado pela ânsia dos começos e pelo gozo de se furtar a qualquer fim, suspeitando destes por estarem dominados por um elemento de resignação. Era sempre na ânsia de nos lançarmos noutro assalto ao desconhecido, pela sensação de princípio do mundo que este nos transmite. E se hoje vivemos dominados por sucessivos cenários em que o fim toma conta de tudo, se isto faz de nós já seres póstumos, isso diz-nos o quão distantes estamos daquele desejo imenso que levava a que nenhuma palavra estivesse errada, a que nos fosse possível aproveitar fosse o que fosse, soltar o tipo de “soluço irreal da carne” que leva a que a realidade tenha de se reorganizar para se conformar com ele. Por agora, no entanto, ninguém confia nisto, no próprio gesto da escrita, nessa obstinação em encher-se de sentenças, gritar para se ouvir gritar, ouvindo muito mais coisas do que aquelas que se teve intenção de dizer. Porque há um momento em que a frase se parte, a gramática já não aguenta e o sentido extravasa, arrastando com ele a própria consciência das coisas, e isso normalmente vem sempre dos piores sabujos, os que se aproveitam do seu desespero e actuam como estripadores do idioma, deixam o enredo aproveitar-se de cada inflamação e fractura, somam a partir de elementos inesperados, e com as passagens que forem necessárias, mesmo com uma linha ténue, frágil, absorvem no seu contorno todas essas partes do discurso reviradas do avesso. São os seus próprios passageiros, deixam-se levar por noções só meio murmuradas, ouvidas imperfeitamente, assumindo uma espécie de fé nesse elemento selvagem e tão urgente que há no acaso. Cada escritor elabora de fora para dentro esse órgão produtor de ventos. Depois é preciso lutar com todas as forças para que o buraco não feche.



terça-feira, setembro 19, 2023


Estes hábitos esquisitos são já a última
defesa que temos, esta cabeça vazia
onde dou umas braçadas, me afasto
abalando o reflexo da noite
que sou incapaz de ler,
vou-me agarrando como posso a isto
e nem é a noite que faz tanta falta,
mas a sua força,
um ferimento de copo partido e a mão
desfeita de lhe segurar no estribo 
a rede estendida para mares ainda
por nascer, um postal que se faz valer
de tudo o que não ficou por cá 
a admiração de um verão sem história 
com maçãs, os lírios a apodrecerem felizes
numa lata, 
abrimos um livro ansiando que a língua
nos seja novamente estranha
fartos dos que estão sempre à vontade
com o que têm para dizer,
das coisas de que se pode morrer hoje
o pior é esta gente que enfia tudo num eco
um som cada vez mais frio
o tempo é agora o último assombro
o seu mecanismo vasto
meio  desarticulado, gasto-o
em transcrições e revisões do passado,
com o mesmo sangue vou a outros lugares
leio alto a linha na porta do frigorífico:
na poesia reside ainda a faculdade 
de migração da espécie...,
será a coisa mais importante que li em anos
que os nomes são as últimas distâncias
que ainda resistem
não resta assim outro perigo neste mundo
além do ritmo entranhável de uns quartos 
com o seu clima próprio,
a lâmpada que atira a sua luz
até ao extremo da vida
imagens que a ligam e trazem um gosto
e um cheiro mais fresco que a carne


segunda-feira, setembro 18, 2023


Os corpos chegam a ser as histórias
mais difíceis de contar
aquela estatura sem alcance neste mundo,
destroço bailando à superfície
dos territórios cegos a que a memória se prende

despertamos certa manhã
e não nos parecemos já com o nosso tempo
tem-se água presa no ouvido
um rumor que nos tira o equilíbrio 
e num reflexo vislumbramos a carne única
dos dias em que partilhámos a violenta beleza
das conquistas em comum 
vivíamos bêbedos das coisas 
que prometíamos escrever,
mas depois os melhores desapareciam
para regressarem tão mais tarde
com aquele fragrante cansaço
sinal de experiência e decepção 
sustentando as ruas nas próprias vértebras
puxando um fio desde as origens da terra

lembro-me deste e da sua débil figura
como se metido para dentro
aquele silêncio inesgotável que tinha
diante das coisas
e como lhe deixava a tinta sobressaltada
eram as cartas dele o que importava
mais que os nossos poemas nas revistas
cheias desses detalhes saborosíssimos
princípios e fins de contos
naquele dialecto colérico luminoso
mostrava-nos como se repete uma palavra
até esta dar forma a outra vida
voltara com uma fé absurda na amizade
partilhando a geografia de uma sede sigilosa
fazendo da dor uma espécie de pacto 
deixando claro como a amargura
é o oposto da indiferença

fazia chegar às nossas secretárias esse mar
e aquele corpo derivado de tanto dar à costa
à margem de uma ilha prolongada
como um delírio ou uma amante terrível 
pois se não é possível atingir a saciedade
afogar-se não é mais que outra gota
aceitava o seu supremo azar como prova 
da sua inocência 
apontava e deixava as distâncias convencidas
do seu engenho
expondo a raiz dos pássaros, do som
mas era-nos impossível extrair do ar
os ecos que ele enredara noutros horizontes

no fim restava o quarto minúsculo onde se recolhia
aquele talento educado pela solidão
o modo de cortar um fruto como se abre
outra e ainda outra janela 
os dedos queimados as mãos cantando
o fumo comovido a imensa legenda
dos objectos encontrados naquelas viagens 
e depois a duração dessa decisiva idade
que alguns nunca atraiçoam,
a frescura que lhes chega como certas palavras
que havíamos dado como perdidas
e que para eles atingem um rigor imprevisto
com o sopro agudo da ternura.



domingo, setembro 17, 2023

Margarida Vale de Gato. A poeta ventríloqua

 

A impossível solidão do crítico vê-se por essa resposta difusa a cada passo mais brusco que dê ao darmos por ele eternamente de punhos no ar ou esgrimindo mil argumentos diante de um ror de gente que, sob procuração do autor “caluniado”, lhe vem exigir meças, e que restitua as coisas ao modo como estavam antes, o livro sobre o qual ninguém tem nada de relevante a dizer ou a obstar, mas que se presta a um culto esvaziado, a uma admiração enjoativa, que tanto se enche de superlativos para disfarçar a falta de qualquer vertigem. Bem dizia Lêdo Ivo que o que se espera é que seja o livro a gritar depois da caneta, da tinta e da mesa de trabalho, mas que, “geralmente, são a caneta, a tinta e a mesa de trabalho que gritam depois do livro”. Ou então vem a denúncia e a barafustação por interposta pessoa, o ego inflamado colectiviza-se, faz-se um concílio e espera-se que sejam os amigos, coadjuvantes e cúmplices ou até súbditos a rasgar as vestes, tudo para impedir que o autor se entregue a um transe de autocrítica dilacerante. Hoje, todo o autor que se preze, após dar à estampa um novo livro, faz questão de ser visto por aí como um rei Lear, seguido de um séquito de cortesãos e palhaços, recrutados sobretudo entre esses grupúsculos onde se reúnem várias deformidades literárias. E é sobretudo aquela literatura academizante, esterilizadora, aquela que menos pode dar-se ao luxo de abdicar desse regime de consórcio, precisamente pelo receio de se ver posta em causa. Mas que mal teria começar por encarar a própria obra desde o ângulo que lhe fosse menos abonatório? Não terá ela forças para sacudir os juízos mais virulentos que possam recair sobre ela? Não foi precisamente isso o que foi ocorrendo com quase tudo o que hoje temos como obras que conquistam os leitores por lhes serem tão necessárias? E não são essas primeiramente aquelas que revelam a sua inapetência para estas palhaçadas publicitárias, esquivando-se ao ruído e a essas formas de invertebrada adulação. Os livros já são redigidos e entregues em mão pelos autores a esses porteiros de todas as consagrações, e abdicam do confronto essencial que passa por o autor não se desdobrar e andar por aí como um fanático da sua própria obra. Não nos merecem maior admiração aqueles que fazem o que têm a fazer e logo se colocam à margem, e assumem até uma certa desconfiança ou frieza em relação ao que deixaram pelo caminho? Em vez de um deslumbramento consigo mesmos, não são bem mais cativantes os criadores que mantêm uma postura de recusa mesmo quando tudo à sua volta conspira para agraciá-los, fazê-los sucumbir a um efeito de adesão confusa e mole? Perante esses mecanismos, os verdadeiros artistas  provam o seu livre arbítrio e a sua desobediência não acatando os louvores que, por mais benévolos que aparentem ser, ainda assim os rebaixam. E nessa hora em que tantos cedem, é necessária uma convicção absurda, para que se revoltem como quem se salva, recusando essas formas de cativeiro, de tal modo que, no fim, como antecipando a desgraça de todo o monstruoso êxito que lhes estava reservado, Fernando Pessoa, reconhecia: “Ainda bem que isto vai mal, porque isso é a nossa salvação”. Mas para as vedetas dos versos sensaborões que hoje vemos serem mais celebrados por aí, vai tudo muito bem. Parece ser já muito tarde para inventar algo que provoque estranheza e rejeição num primeiro momento, que gere uma verdadeira indisposição das almas, nada disso lhes convém, nada que não seja uma recepção triunfal e unívoca. Se até há umas décadas se esperava que a arte se impusesse de forma arrogante, numa efervescência de diatribes contra a tepidez que caracteriza o regime de abulia cultural, de há uns tempos a esta parte a poesia, como toda a arte, vem-se comportando de uma forma cada vez mais cautelosa e até mesquinha, tudo para causar boa impressão, gozar desse favor imediato de um público que já nem cai de joelhos, mas vive ajoelhado, faltando-lhe o discernimento ou sequer o orgulho para exigir da arte que cumpra a sua função e lhe provoque suores frios, corroendo os seus hábitos e presunções mentais. No actual esquema em que a crítica se tornou algo de absolutamente intolerável, vemos como cada vez mais na arte “todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos” (Gombrowicz). Margarida Vale de Gato provou a sua alergia a qualquer outra coisa que não fosse uma reacção servil da parte daqueles que ousam ler em voz alta os seus versos e retirar daí algum tipo de ilações ou um juízo que não coincida com esse registo pomposamente cordial, rançoso e adocicado. Num dia manifestava o seu agrado por ser alvo de uma prosazinha encomiástica e obtusa, de uma jovenzinha que se aprestou a vir cumprir a única coisa que se admite hoje dos jovens, que é assumirem uma postura admirativa, submetendo-se à hierarquia e distribuindo as bolachinhas para acompanhar aqueles poemas encharcados de chá. No dia seguinte, já manifestava uma leve irritação quando um crítico vinha assinalar o “artificialismo” de tantos dos seus versos, e, por fim, acabou por descoser-se na sua ficção altiva, primeiro esperando uma reacção em cadeia e movida pela cólera dos seus apaniguados, e depois estendendo a procuração a alguns amigos para virem dar recados, e explicar que este crítico tinha, afinal, uma agenda, e que a ferocidade dos seus argumentos assentavam numa rejeição anterior. Como acontece com qualquer posição que é na sua essência conjuntural e que, portanto, assenta na falsidade, MVG sabe que o seu pequeno trono não resulta senão de um regime miserável e superficial, ardiloso e medíocre, e sabe que o seu livro é incapaz de sacudir as suspeitas sobre ele lançadas. A questão é que todo o verdadeiro poeta prefere ser lido com a maior das suspeitas e superá-las, pois nunca como hoje foi tão necessário estabelecer uma linha de demarcação, uma vez que, como frisou Gombrowicz, já há demasiado tempo que aquilo que está vivo se mistura com a morgue. “É preciso que a vida se sinta vida, que experimente a sua crueldade, nitidez, o seu impacto e que comece a traçar os seus próprios caminhos.” Pelo contrário, MVG vive no terror de ser lida deste modo, receando que se torne claro como grande parte daquilo que atesoura nos seus versinhos não é mais que a expressão de um malabarismo para se furtar a dizer seja o que for, e que precisa desse alexandrinismo pedante, desse barroquismo de adorno para cativar aqueles que já só conseguem relacionar-se com a poesia nesse modo exausto, reagindo ao desconchavo de uma prosódia atordoante, uma sintaxe que faz sacolejar o cérebro para que o leitor se sinta tomado de tonturas e se apresse a chegar ao fim da viagem, com um mal-estar provocado pela trepidação artificial, e isto fornecendo as mesmas glosas engarrafadas de sempre. Porque estes leitores exaustos não sabem já como lidar com a frescura reinventada, e exigem aos versos apenas essas buliçosas construções em segunda mão. A primeira coisa que deveria exigir-se a uma poesia que aparece como nova é que não queira soar como algo poderia ser dito por alguma estátua. Que não se limitasse a recitar, não rugisse a despropósito, não dissesse piadinhas. Por isso é que hoje toda a gente evita a poesia por se ter tornado esse modo inútil de expressão eleito pelas capelinhas, por essas associações de adoração mútua. Assim, por mais que nos venham com estas "maravilhas" em regime pronto-a-vestir, não é de espantar que sempre que eles referem estes nomes fiquemos desiludidos, com a sensação de que não se impôs nos últimos anos uma só individualidade verdadeiramente profunda e autêntica, como além disso estamos reféns destas hierarquias espalhafatosas e que dão dó, precisamente porque não há medidas significativas do valor de uma obra poética poderosa e excepcional. Todas essas considerações ficam-se por conjunturas afectivas, enredos emocionais, mitos obsoletos e noções espúrias quanto ao que rima com a velha afeição pelos ritmos espevitados a que o ouvido se entrega amestrado, sem querer confrontá-los.  “Os poemas a vir são para ti e para mim e não são para a maiorpartedaspessoas – não vale a pena tentar pretender que a maiorpartedaspessoas e nós são a mesma coisa. A maiorpartedaspessoas têm menos em comum connosco do que a raizquadradamenosum”, assinalava e. e. cummings. Mas esta poesia que nos servem já com as indicações próprias de toda a refeição pré-cozinhada, já meio deglutida, explicando que deve ser aquecida no microondas depois de se fazer uns furos na película… Ainda que os versos de MVG se sirvam de todos os subterfúgios para simular a ânsia de uma contínua novidade de dicção e métrica, esta revela-se tão patológica como se se limitasse a exibir um exotismo empalhado e que não cobre qualquer distância nem nos provoca a sensação de sermos assaltados por uma largura de horizontes com alguma consequência na nossa vida íntima ou intelectual. Saímos daqueles poemas tal como entrámos. É uma literatura que se reveste de todos os ademanes, se faz de esquisita, expõe-se num garridismo exasperado, mas, no fim de contas, não compromete nada nem ninguém, não há um só verso que se nos lance à garganta e que a aperte, que nos traga um odor revoltante ou uma impressão mais venenosa, alguma noção menos vaga e mais apontada ao coração da época, como uma estaca que possa dar cabo deste baile de mortos-vivos. É uma literatura de relações herdadas, noções adquiridas, dirigida a todos os paladares, que nem busca aquela tensão insuportável e no limite da rotura que caracterizou as aberturas desses espíritos modernistas que tanto procura exibir e finge homenagear.  À entrada da sua “terra devastada”, Eliot inscreveu a fogo estas palavras de Petrónio: “Porque eu vi com os meus próprios olhos a Sibila suspensa numa gaiola em Cumas, e quando os rapazes lhe perguntavam: ‘Sibila, o que queres tu?’, ela costumava responder: ‘Quero morrer’.” Se a mesma pergunta fosse feita pelos rapazes a Margarida Vale de Gato, estou em crer que responderia: “Um prémio literário vinha a calhar e também compunha o ramalhete, e mais honras oficiais, carinhos públicos e depois umas traduções lá fora, bolsas de apoio à criação e viagens para ir em digressão a baloiçar-me na minha gaiola.”

quinta-feira, setembro 14, 2023


A primeira noção do sagrado
do encanto pelas coisas terrestres veio
e ainda não tínhamos uma idade certa
vivíamos da caça aos detalhes
achando alguma pedra equilibrada num muro
não tínhamos tantos sinais
espalhados pelo corpo
viriam depois as dores aqui além
abrindo um mapa de lugares
que nunca quisemos conhecer,
a miopia a asma as cordas vocais
afectadas, e o ouvido fraco
a memória como destroços flutuando
parecendo apoiar-se na imaginação 
e esses vazios no antigo sabor das coisas
aos poucos vamos imitando o amor
desde os vasos às descrições mais secas
dessas que obrigam a molhar os lábios 
colhemos caroços nas camas
os livros abertos ali deixados
como frutos mordidos comoventes
a perfumar a desordem dos lençóis
fomos atravessando a intimidade
de estranhos, a membrana dos quartos
rezando entre as flores mais distantes
as mãos suspensas
os nossos instrumentos gastos
e a eternidade roncava surda
restava-nos a boca, ler os lábios 
no balcão apátrida de alguns bares
nas zonas mais fundas
mais tensas da noite
onde começou para nós a descrença 
nada antes nem depois mas apenas
esta vida a passar corrigindo
todas as ilusões que tínhamos


terça-feira, setembro 12, 2023


São os hábitos dos outros o que nos acorda
e vês-te desconjuntado com a mão
ainda perdida de ter folheado a noite, 
na boca o gosto de algum corpo que se vai 
fazendo impossível hoje, como o desejo
e que banhos se tomam que música pelo prédio
com a canalização o ferro das camas rangendo
que banhos e que água doce marcando
na parede a leve oscilação de outras marés
ali na calma derrota dos quartos
depois de nos ter aborrecido a batalha
estendes a mão para a janela feita a lápis 
e tocas o fruto persistente apodrecido
agarrado ao ramo como uma lembrança
do mesmo modo que ela tinha o hábito
de pesar nas mãos um pêssego
até este apodrecer, e eu não sei fazer
melhor, junto migalhas,
botões, dentes, ofereço-lhes a trégua
de um sentido, sinto-o no conjunto
tal como os surdos ouvem música
através dos ossos
e entendo o que a morte quer dizer,
não um final rude e absurdo mas aquele
trabalho contínuo, riscando
livrando-se do excesso, impõe-nos a força
da elipse, dando cabo da memória
sem antes nem depois ficam só as partes,
lábios de pedra abertos, nem homens
nem deuses, apenas essa canção
feita dos restos.


sábado, setembro 09, 2023



Vem de lá pondo os pés entre o que cantam
os grilos e vem sem o menor barulho
uma mão acesa antes de lançar 
o cigarro e pôr fogo ao horizonte
despe a camisa e ainda tem o mar
como num verso de que me lembro
antes de riscado, era isso e a predilecção
que havia então por pássaros, e eu hoje
só penso neles quando mais nada
pode ajudar-me, é fácil estragar a vida
por um excesso de adesão às palavras
mas o sagrado é outra coisa.
Anda por aí um som que não se pode reter,
e talvez só a dor que sobra para o silêncio
lhe seja fiel, queremos repetir um pedaço 
e logo nos escapa talvez seja
porque seguimos alguma canção
dentro do esquecimento, 
os dons imprudentes de quem se perde mais
e depois o odiado sabor da irrealidade
que enfim recai sobre nós,
já não sei o que inventar para te chamar
gostamos dos antigos enigmas debaixo
dos mesmos astros, como nos parece
que as coisas gostassem de ficar dispostas
perto da morte, esse gosto de ir daqui
sem levar nada deixando como bilhete
a melodia da nossa ausência.


segunda-feira, agosto 21, 2023


Ainda há quem com isto só queira dar espaço
à pobreza, os olhos vindos de tantos sítios
misturando os detalhes, o cuidado 
das formigas ao carregar o resto de uma estrela,
alucinadas pelo brilho que morre na erva,
dou-te o exemplo também desse rapaz 
esfomeado apreciando a vista
sobre o ombro dela, como gosta de esconder 
parte do rosto, defender-se dos dias
seguindo a linguagem e os gestos
entre a vaga crónica de sonhos e pesadelos,
no quarto dela entregue a um balanço
desarmante, com as edições de bolso
e alguns alperces quase secos, 
a semelhança de certas horas com a paixão,
os nus pintados de forma grosseira,
os mais doces ainda inacabados,
aquele quadro onde o olhar de cada um
sente o prazer de se deitar como o orvalho 
sobre um campo de flores, e depois
a suave radiação das distâncias, algum sinal
de vida onde os caminhos se cruzam,
aquele que beija a fechadura, e o outro
que abana a cabeça até esta lhe cair
e há por fim tanto a aprender com o que não 
acontece, ou não é para nós, essa desolação
de passear pelo museu do impossível
o gozo de introduzir o esquecimento
no mundo, e as palavras como formigas
carregando a doçura que nos resta.