terça-feira, junho 11, 2024


Vê-se o mar da cama, e à volta
os sinais de uma vida descuidada
deixando cair o copo
da mão e a boca ou o olhar tentando
prender um gosto, a janela aberta
a paisagem bêbeda, as aves
buscando repouso no rigor da sua grafia,
a terra ancorada fundo, e a casa
decrépita discutindo com o vento,
a certas horas é o mar que soa
como uma velha gravação,
e as águas já nem se defendem
do seu único afogado.
A luz não cumpre horários, vem
vagueando à superfície meio ausente 
e o mundo mostra sinais de se acabar.
Por estes dias todo o fogo se dirige
para as memórias,
não temos mais nomes,
mas ainda nos socorrem estranhos
usos para a carne, imitamos
os cuidados daqueles que do escuro
arrancavam novas formas
conservando alguma flor por dias
na garganta,
que ao apodrecer lhes adoçava a voz
e assim tudo diziam melhor
caçando impressões, sons desconhecidos
cada reflexo perdido
até que a mudança acabasse arruinando
tudo, salvo a Beleza, que se acha
sempre sozinha.
É preciso empurrar para os bosques,
perder-se de ouvido num tumulto 
que te comove tanto,
mais que o mundo antigo.
Éramos poucos, quase raros,
e a vida exigia-nos tanto, 
atravessávamos os sonhos uns dos outros,
a boca murmurando cada gesto,
e talvez disso ainda me reste um eco
o dela vindo à frente dispondo
a sombra fresca,
prenhe do que lhe apetecesse
e depois de a ter, livre de mim
eu juntando o pó que seríamos
numa linha só,
e a meio escondia uma semente negra,
das que cantam, no bolso
e já deste lado deixo-a num pires
a tremer junto de um pouco de água
que não pode defender-se dessa sede.
Bebe-a, quebra-o e move-se
sobre as estantes, atravessando as folhas,
absorvendo dos livros a tinta
e o delírio, lendo o que quer
e quanto quer, cada ramo florescendo
no desejo de levar algum gesto até ao fim.


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