Traz a música que nos esquece e diz-me
que os versos não passam
de uma rara doença do ouvido,
pois eis-me aqui sem remédio agrilhoado
como esse outro que veio e trouxe o vento
ele só, só ele, afoito luzidio
com aqueles gestos todos enervando o vazio
era da raça dos que surgem a horas inquietantes
batem à porta e fazem estremecer as sombras
batem, arrancam-na dos gonzos, entram
uns olhos enormes, sanguíneos, e falam
de tudo depressa, voltas ansiosas, levantam
viram interrogam a disposição das coisas
como se em busca de alguma tábua
para escapar ao naufrágio
meio diluídos na torrente da memória
trazem uma conversa absurda perseguem-nos
gastam a delicadeza em hábitos rudes
e depois suplicam a todos por perdão, mas
se havia outro mundo de que lhes pedíamos
sinais, notícias, um cansaço doce
agarrando-se a um instinto mais subtil
deixando-nos sensíveis ao tacto e aos sons
depois com o desgosto pelas nossas vidas
também deixou de nos apetecer o que não existe,
a rosa invisível, a cor que nos abre,
esse excessivo olhar de tudo o que nos olha,
riso e ruína, por vezes ao provar o vinho
ainda o sentimos envolver-nos,
damos por nós na travessia das fronteiras
perfumadas, e lutamos estupidamente
por não adormecer então,
queres ficar sóbrio e só depois
cerrar os olhos e partir, talvez o vinho
seja tão doce por isso: a memória dos mortos,
o mundo apanhado de surpresa, perdido
um dia e de novo recuperado com toda
a dor e o absurdo encanto de quem regressa
e respira por uns instantes mais
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