quinta-feira, fevereiro 15, 2024


Todos os caminhos servem,
os presos sabem-no melhor que ninguém
como a distância é a mais bela
das nossas ocupações,
os homens que vão têm esse amor
absurdo à coisa seguinte, gostam mais
da mulher do outro, até dos filhos dele,
só porque têm de partir, deitam-se sem
perder o sentido dos ventos, das montanhas
da água, do céu e da terra, comem e bebem
trocam o que podem, deixam o resto, 
cantam e correm, e quando se vêem presos
queimam os dedos em restos de estrelas,
escondem coisas que não existem,
usam aquele olhar de quem guarda
um segredo espantoso, usam a fome
como uma droga, brilham para o seu mundo,
derivam nessas lúgubres fantasias,
e deixam-nos os cochichos melodiosos,
alguém mais tarde irá copiar para uma pauta
a canção que surgiu muda, raspada
no chão da cela, e como balouçava toda,
a última mulher fez muito da vida
ali trancada, fez a sua vingança bailando,
os longos cabelos, os braços levantados
e ria sozinha, desenhando um círculo
com os pés descalços, imagino
que tenha tido mais alguns amantes,
pois há sempre outros corpos por descobrir
no gosto que fica na língua, no idioma,
nessa memória e rastro que serve
aos que sabem devorar-se para morderem
o lábio da eternidade, e eu ouvia o ruído
ao passar no corredor, encantava-me
mas não provei os bagos que crescem
nas raízes entre as pedras
alimentadas pelo clarão da lua,
ainda pude reter o assobio dela,
mas com os séculos aonde irão parar
estes dentes, alguém mais há-de sorrir
exibindo-os? Sinto já o frio
em algumas das partes, peso três vezes
o que ela pesava, e tenho pena,
pois devia ter rodado a chave.


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