quinta-feira, fevereiro 29, 2024


O que me perde e me aniquila 
como a Carilda é esse desvio da pupila,
esse gozo trágico para que o mundo
nos chama. Como o olhar nos absorve.
Seria tão difícil fazer um pássaro.
Alterar uma vírgula na composição das coisas.
Aqui, no calabouço do mundo, de madrugada 
consigo ouvir um. Do ouvido
depressa nos surge no esqueleto,
assim a memória canta debaixo da pele
do mesmo modo como da sede
que nos desfez os lábios
retiramos a forma de outro corpo,
encontrando pelo meio esses anjos sujos.
Contemporâneo sim, mas de quem?
Talvez de um que outro corpo desses
que se esquece nos bares, em comboios,
falésias, jardins rasos com sabor a vinho
onde eles fazem poses absurdas
aguardando-se nos bancos, depois
temos os quartos calmos, recolhidos 
onde alguma melodia raspada nos abraça 
e de outro modo como poderiam ainda
respirar estas coisas se já ninguém
escreve assim? Não farei do pó
um parentesco, dizias-me,
mas depois também o tempo se enredou
no brilho de uma estrela antiga, em sufoco,
sinto-lhe a fúria como a da sereia
que em miúdo tive num frasco, 
com um búzio e algas, e daquele choro
à cabeceira restam ecos húmidos,
a sensação por vezes de o quarto
ter ficado debaixo de água.
Mais tarde quis trazer-lhe as ninfas
de água doce do Camões,
o lento enredo dos corpos nus,
o cheiro da roupa abandonada,
a difícil correspondência que persiste
das primeiras visitas até às despedidas
quando cada gesto cede como fruto
de uma árvore desaparecida, e fica o frio
das comparações, do que éramos,
a lembrança de termos sido devorados vivos.


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