Espiamos os fogos acesos
ao longe, e aqui no fresco claro-escuro
da bela tarde que tomba, tudo nos parece
saciado, os caules de um ramo
de cravos brancos
pousando num vaso de mármore,
esse molho de folhas dactilografadas
com uma pedra em cima,
um barco deitado agonizando na areia
enfrentando a distância
que já não lhe pertence, e o mar que
ainda lhe diz qualquer coisa, mas o quê?
A claridade atravessa-nos, o sal
deixa os olhos calcinados,
agora parece que tudo recua
e se desfaz, tornamo-nos vagos
frágeis como lembranças vagueando
por dias apagados. Tens ainda
um copo de água fresca
e um uivo ao lado, a possibilidade
de acordar os mortos, ouvir deles
o resto da frase, aquilo
que os susteve trauteando no escuro.
Podes raspar o colibri no muro,
fica-nos sempre uma cor impossível
nos dedos, um cheiro
que vai e vem, e agradeces
esse gosto de rabiscar que deu origem
aos gatos. Rente à transformação
abandonamos os limites,
as linhas onde se mistura o brilho
das últimas imagens, rodeados
de velhos atlas, da mobília roída,
do ar carregado da urina
e da incontinência dos loucos,
das vozes baixas dos que deliram
imitando os vivos. A sombra que te seguiu
todo este tempo desde a primeira batalha
até à cozinha, a esta hora do dia
alegra-se diante dos pêssegos, dos azulejos
brancos, da madeira lisa, sente-se
o perfume do fim, o silêncio que abafa
um longínquo rumor,
e é doce ter ainda uma hora ou duas
para saborear as hipóteses de um epitáfio.
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