A descrição vive do tanto que à morte escapa,
como o ritmo das vagas a propagar-se
debaixo da terra, ou os sinos
que a revolvem, os girassóis carbonizados
que tremem no interior das gavetas,
os caroços perfumados com que os gestos
enfim aprendem a desfazer o tempo,
como os olhos se perdem de vez
e tudo resiste como quer,
o mundo surge desfasado de si
as coisas tornam-se presas do mesmo
movimento doloroso,
a água do fosso não consegue livrar-se
de uma ruga de expressão
ou da antiga noite que nela se reflecte
vertebrada pelo brilho alucinado
das constelações,
a respiração é arrastada por um eco
que não reconhece a sua origem,
a rua que nos resta parece incapaz
de nos levar daqui,
temos a mesa aonde tudo regressa onde
a chávena depois da tua boca gosta
do vazio, onde nos estudámos tanto
fizemos o que o desejo pediu e depois
para nos magoarmos
sem abrir mão da doçura falámos de corpos,
de redes esquecidas no leito
de outros rios, a alegria de jogar sujo
enquanto copiamos para a pele um
do outro as mesmas cicatrizes,
e todos os adeuses, causas perdidas,
nomes por entre os quais a nossa voz
veio a parecer-se intimamente com o vento
libertando-nos de algum sabor obsessivo,
à vez iluminamos o fundo para que o outro
extraia algum detalhe, pintamos e
transpomos para as paredes
cenas vivas dos últimos dez mil anos,
alinhamos os frascos por onde vai a procissão
do murmúrio que sobrou,
o último pirilampo antes do fósforo,
um dedo de Safo, uma pétala de Emily
Dickinson, as vísceras da ave
onde Rimbaud leu o seu destino,
a borboleta irisada que Nabokov compôs,
a última beata a arder ao canto da boca
de Dylan Thomas, e o luto
dos séculos seguintes
enquanto o poema perdia a sua vocação,
esse contrabando a favor dos que cosem
na bainha das línguas o esplendor
dessa memória comum,
signos que trazem ao leitor os frutos
de uma intimidade indevassável
e que a morte não sabe ler.
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