segunda-feira, setembro 25, 2023


Os deuses morrem à nossa volta, nem se despedem,
saem desfeitos e tudo o que tocaram
assume um ar perdido, a memória desagrega-se
mas ficam certas visões, a paisagem desarrumada
vamos pisando a luz vidrada e soam
notas espantosas, o chão respira
com os nossos passos, com o gozo
de um certo descuido, agora já podemos
romper tudo, provocar a vida caminhando
por essa tempestade de sugestões 
nem um sussurro nos escapa e há sempre
aquele fragmento que nos rasga a carne
o vento esbarra nalguma torre cantante
e da boca de quem dorme ainda ao nosso lado
ao amanhecer escutas uma frase prodigiosa
e esse rapto esse momento de glória diz-nos
como o maior talento é a confiança em tudo
deixar-se arrastar pela corrente e sobretudo
se é forte, por mais brusca que seja,
cair sob o efeito dessa beleza absurda
da volta que te dá, como te revira,
tudo aquilo que se ouve e nos sacode
e nos foge, sendo óbvio que nenhum assombro
neste mundo seria feito para durar, mas o mundo
segura o fôlego, cada pensamento ou gesto
corta o anterior como uma lâmina e
é na cabeça que se dão os maiores abalos, 
passam por nós as feras como sombras
no espelho, e na sua pelagem escura
a cor das estrelas vai deixando reflexos,
então sentimos como um tremor no sangue
essa alegre desordem dentro de nós, 
e acata por isso o conselho desse pintor
que embriagava o próprio grito
e vinha por aí depois do trabalho 
com aquela largueza e os excessos
de abrir e desemperrar o espaço nas telas.
A técnica cheira primeiro a suor e logo
vem até nós o perfume das bestas reunidas
do outro lado da fronteira,
pois assim pergunta-te quem quis
mexer com os elementos,
comer dessas uvas sem semente,
feitas de espuma do mar,
quem se atreve a manter o curso
quando a ressaca toma conta dos nervos,
e um custo impossível ameaça cair sobre nós,
quem se recusa a voltar para os navios
enterrando-se mais fundo no terror virgem
do mundo, como o pobre do velho,
Homero, cego e talvez por isso tão confiante,
cada passo dado sobre um possível abismo,
treinando o ouvido, apurando-o
nesse murmúrio de vozes tão antigas
como os grandes cursos de água 
parecendo deter o balanço firme e o ritmo
capazes de descoser o fio entre a vida e a morte,
andar de uma para a outra, encher-se
de sentenças, noções bravias, tomar o pulso
do que só pode ser meio murmurado e
imperfeitamente ouvido, mover-se por aí 
como um deus no seu último dia,
passando a mão por entre as vinhas
que crescem em seu louvor, mordendo
os bagos cheios com que alimentou
leopardos e outros felinos que tanto amou, 
colhendo inspiração para a derradeira praga,
até dar-se conta de que o pior
seria recusar-lhes o hálito e as coisas que diz
nesse seu cuidado de as entregar
a uma densa e estranha espécie de música.


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