sexta-feira, setembro 22, 2023

Os alarves do lirismo

 

Não parece haver modo de se chegar a vias de facto por aqui. E, no entanto, não seria melhor se tomar partido por alguma causa, algum dos lados numa contenda, comportasse algum nível de sacrifício, certo grau de moléstia, e que nos deixasse marcas mais ou menos profundas, encorajando-nos a pesar bem cada frase antes de desferir o seu golpe fosse em que sentido fosse? De resto, o agressor sabe que, mais tarde ou mais cedo, o agredido será ele, e que qualquer palavra que pronuncie poderá ser invocada contra si. Mas esse deveria ser precisamente o risco que mais nos incita. Produzir ecos capazes de se autonomizarem e de, mais tarde, se voltarem contra nós. Mais até do que uma vontade de se mostrar invulnerável, há essa noção de que o perigo maior é dar por si engavetado, ou proposto a essa circulação dos textos que se limitam a executar disposições testamentárias legando certos aspectos estilísticos e temáticos à geração seguinte, mas que, no fundo, não aquecem nem arrefecem. Mais do que qualquer outro desses propósitos referidos pela maioria dos escritores, o desejo de ser infame é algo que se mostra hoje mais necessário do que nunca, até para fazer ver aos demais a ingenuidade de quem se abalança nestas lides presumindo que se trata de uma ocupação da qual se pode entrar e sair incólume. O desastre maior da nossa época é essa presunção da inconsequência das coisas que se dizem ou escrevem. É natural que nos provoque irritação a atitude leviana com que tantos se propõem publicar sem anteciparem como isso significa estender um convite para um embate decisivo. Bataille deixou claro que “um homem difere de um animal no facto de certas sensações o ferirem e o liquidarem no mais íntimo”, mas desde então foi-se tornando comum uma compreensão do campo literário como mais outra atracção inócua, turística, onde as grandes obras se organizam como monumentos a serem rodeados nesse afã dos que andam aos magotes e pretendem assumir sobre elas algum título, como se fossem consumíveis, pudessem ser apropriadas e esgotadas, e é assim que, nos nossos dias, essas moles de aspirantes, que se lançam a tudo sem nenhuma consideração pelo nível de exigência que cobra cada disciplina, e sem o menor receio de serem tomados por imbecis, presumem que a poesia pode albergar e estimar os seus delírios, e desde logo chegam a ela pensando que poderão assim evitar todas as dificuldades dessa arte incrivelmente difícil que é a boa prosa ao quebrar a composição em versos às escadinhas. São normalmente certos agentes sindicais interessados em ver aumentar as suas fileiras e também o género de usurários que todos os dias encontram novas formas de engrolar este género de pacóvios quem mais alimenta essas ilusões de que arte pode funcionar como uma agência para os troca-tintas do ego, sendo que qualquer leitor com algum discernimento consegue dar-se conta da superficialidade dessa investida. A este respeito, Ezra Pound deixou um aviso essencial: “Não pense que a arte da poesia é de algum modo mais simples que a arte da música, ou que pensa agradar ao especialista antes de fazer pelo menos tanto esforço na arte do verso como o vulgar professor de piano gasta na arte da música…” E adianta ainda que, se o cientista não espera ser aclamado como um grande cientista até ter descoberto alguma coisa, isso obriga-o a começar por aprender o que já foi descoberto, e só desse ponto poderá partir para o esforço de impor algo de novo. É natural que os do nosso tempo, estes que estão sempre de malas feitas distribuídos pelas paragens à espera de um lugar no autocarro da posteridade, detestem a figura do crítico, aquele que segundo Benjamin encara o seu papel como o de um “estratega do combate literário”. É que o crítico, como este o entende, “não tem nada que ver com o exegeta de épocas passadas”. Não está aí para firmar valores, não é um mero pica numa dessas composições. “A posteridade esquece ou louva”, lembra o ensaísta alemão, já o crítico “julga face a face com o autor". Não tenta interpretar os humores da eternidade. Todos os lugares lhe são presentes, ele está lançado na ventura, e vê-se de algum modo sempre como o desertor de algum passado, sempre cobiçoso de um porvir que ele mesmo admitirá que, se chegasse, logo o desiludiria. São detestáveis estes escritores e poetas dos nossos dias que procuram por todos os meios esquivar-se a um agreste confronto de posições. Podemos citar—lhes todos os autores que dizem que admiram, podemos retirá-los dessas posições ridículas em que os enterram, e mesmo assim fingem que não é nada com eles. No entender de Eduardo Prado Coelho, a categoria que se deveria aplicar a este tipo de pessoas é a da canalha. "Em que sentido? Para designar uma modalidade de seres que substituíram todo o desejo pelo empolamento de si próprios e que vivem numa Realidade acolchoada, alheia a qualquer pressão do Real e revestida de um princípio de morte." Agora vêm aí uns quantos numa dessas edições patrocinadas pelas autarquias como sempre convém, vêm soprar as cem velas sobre esse cadáver que teve a culpa de deixar que fizessem dele quando ainda era vivo um bolo para os repastos ignaros desta gente que da cultura faz sempre algum regime de conveniência, uma gente que não tem consciência nem do tempo nem de nada, organizando-se sempre de modo a nunca ficarem excluídos das delícias orçamentais. Ora, muitos destes aproveitam-se agora do centenário de Eduardo Lourenço para continuar a cortar o bolo agora sobre a campa, e é claro que, em lugar de uma antologia num espírito minimamente fora-da-lei, estendendo uma teia que fosse complexa, agressiva, ou mesmo delicada, de uma audácia tranquilamente grega, limitam-se a vir-nos com outro conluio dessas mesmas aves cuja vida se restringe aos cemitérios. E aqui repetiria as palavras dele, estando certo que farão como ele diz… “Nós criticamo-los mas eles usam uma estratégia que sempre deu resultado, enquanto deu resultado: aparecem, reclamam-se, juntam-se, parecem todos e são só alguns. A coisa literária, aliás, não lhes interessa mesmo mais e nisso são coerentes.” Bem que podiam ler a correspondência dele com Jorge de Sena, mas ainda que o fizessem nunca se deixariam salpicar pelo infrene tom acusatório daquele magro volume, onde o autor de Exorcismos dizia ao outro que não tinha como se contentar com a perspectiva de só ter para convívio um bando de idiotas competentes naquilo que ensinam, pesquisam ou julgam que criam, “mas para os quais a cultura e os seus problemas nada têm de vital, a não ser na medida em que afectem os interessem do seu pão quotidiano”. Enjoados os dois de mediocridade e de mediania gloriosa, se assumiram posturas bem diversas no confronto com este reino desolado que, a par de tudo o que o degrada, tem ainda de suportar esse regime de festa permanente que distingue os que sempre vão envergando solenemente as senhas devidas à cultura como um bando de abutres, não discordavam na substância do diagnóstico. E, assim, o que concluía Eduardo Lourenço sobre este ambiente de sufocação em que nos vemos imersos? “Estamos condenados de geração em geração a passarmos uns aos outros o ‘isto dá vontade de morrer’.” Mas que isto não vos incomode. Vamos lá ver que editor está em condições de ir sacar mais uns cobres e reunir outra dessas mostras de alarves do lirismo. Evidentemente, nenhum deles se sentirá ferido no seu íntimo por este ataque ou por outro qualquer. De resto, se há coisa que vai distinguindo estes do nosso tempo, é precisamente a forma como se comportam como os enxames de gafanhotos da escrita que Benjamin supôs que em breve viriam a encobrir o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades. É uma chusma de gente que anda por aí a reclamar-se do título de autores, mas para quem as palavras não têm peso nem sabor, e descem sem memória aos textos, sem drama nem intriga, organizados por esses chefes de fila cuja única lei que respeitam é a simultânea invenção de esquemas e velhacarias para se irem governando enquanto o fedor alastra. E quanto ao crítico, a receita passa sempre por ignorar e desconsiderá-lo, vir levantar suspeitas sobre as suas verdadeiras intenções, descrevê-lo como um canalha, como se isso por si só abalasse a firmeza dos seus argumentos, como se lhe fosse impossível defender realmente uma causa e ser pródigo nos exageros burlescos, como se essas quixotescas e até por vezes aberrantes actividades de polemista, afinando uma arte de injuriar, não fosse hoje a única saída, o género literário por excelência num tempo em que, no geral, todos admitem que, salvo raríssimas excepções (eles próprios e osamigos), vivemos cercados de sacripantas e imbecis, mas isto só enquanto a acusação se mantiver num plano abstracto, sem se tornar punível ao particularizar. Mas é então que fica claro como se sente frágil o nosso regime cultural, apesar de tão poucas serem as vozes que se marimbam no prestígio e escavam as suas trincheiras do lado da infâmia, com a impetuosa e subversiva violência que realmente faz mossa, pois de outro modo, como esclarece Sena, “este ecumenismo todo das várias igrejas não surgiria se elas se sentissem fortes: a unidade delas vem de sentirem a freguesia a fugir”. Ora, nos nossos dias o facto de estarem montados sobre os orçamentos camarários, sobre essas côdeas que ainda são dispensadas aos coitos académicos, diz-nos que a freguesia já desertou inteiramente. E por isso vão triunfando as Margaridas, os Eiras e outros que vão à boleia, e fazem por ingressar no mesmo lote (pun intended), todos esses que podem estender nos seus versos aquele cheiro de sala de aula e de associação de estudantes. Persiste assim essa paradisíaca piolheira, com os seus casamentos entre o céu e o inferno, como “enxertos de sacristia católica, sem nível teológico algum” (Sena). Todos sabem que este regime de folia está perto do fim, que esta ordinarizada comédia que vive de impor os seus valores segundo flutuações acríticas e desonestidades de toda a ordem tem os dias contados. A própria Universidade com esses seus programa abandalhados, com todo o seu bafio, as suas hierarquias degradantes, as práticas endogâmicas, todas essas intrujices que dão conta dos concursos, e que garantem que ali não se promove outra coisa além de uma “sociedade das prostitutas que não fariam vida na rua – como autores” (Sena, uma vez mais), é um sistema que a breve trecho não terá sequer meios para custear toda essa coloquiagem e as edições grotescamente subvencionadas que ninguém se dá ao trabalho de ler. E com este esquema em breve estará posta em causa todo esse modelo de inflação caseira dos talentos que temos espalhados por cada género, e depois vamos rir-nos todos com as aflições dessas “ratazanas académicas” (na justíssima expressão de Eduardo Lourenço) quando não mais lhes forem confiados esses meios para a divulgação de certas obras e autores, e isto quando nunca conseguiram ultrapassar “a glosa banalmente historicista ou apologética, sem alcance espiritual verdadeiro”, de tal modo que temos todo um aparelho burocrático montado sobre a ideia de posteridade que acabará por ruir, deixando muito claro que não fazia falta nenhuma, pois significava apenas que durante demasiado tempo fomos obrigados a “suportar o odor dos coveiros que o acaso de privilégios sem conteúdo transformou em estetas”.


 

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