domingo, setembro 17, 2023

Margarida Vale de Gato. A poeta ventríloqua

 

A impossível solidão do crítico vê-se por essa resposta difusa a cada passo mais brusco que dê ao darmos por ele eternamente de punhos no ar ou esgrimindo mil argumentos diante de um ror de gente que, sob procuração do autor “caluniado”, lhe vem exigir meças, e que restitua as coisas ao modo como estavam antes, o livro sobre o qual ninguém tem nada de relevante a dizer ou a obstar, mas que se presta a um culto esvaziado, a uma admiração enjoativa, que tanto se enche de superlativos para disfarçar a falta de qualquer vertigem. Bem dizia Lêdo Ivo que o que se espera é que seja o livro a gritar depois da caneta, da tinta e da mesa de trabalho, mas que, “geralmente, são a caneta, a tinta e a mesa de trabalho que gritam depois do livro”. Ou então vem a denúncia e a barafustação por interposta pessoa, o ego inflamado colectiviza-se, faz-se um concílio e espera-se que sejam os amigos, coadjuvantes e cúmplices ou até súbditos a rasgar as vestes, tudo para impedir que o autor se entregue a um transe de autocrítica dilacerante. Hoje, todo o autor que se preze, após dar à estampa um novo livro, faz questão de ser visto por aí como um rei Lear, seguido de um séquito de cortesãos e palhaços, recrutados sobretudo entre esses grupúsculos onde se reúnem várias deformidades literárias. E é sobretudo aquela literatura academizante, esterilizadora, aquela que menos pode dar-se ao luxo de abdicar desse regime de consórcio, precisamente pelo receio de se ver posta em causa. Mas que mal teria começar por encarar a própria obra desde o ângulo que lhe fosse menos abonatório? Não terá ela forças para sacudir os juízos mais virulentos que possam recair sobre ela? Não foi precisamente isso o que foi ocorrendo com quase tudo o que hoje temos como obras que conquistam os leitores por lhes serem tão necessárias? E não são essas primeiramente aquelas que revelam a sua inapetência para estas palhaçadas publicitárias, esquivando-se ao ruído e a essas formas de invertebrada adulação. Os livros já são redigidos e entregues em mão pelos autores a esses porteiros de todas as consagrações, e abdicam do confronto essencial que passa por o autor não se desdobrar e andar por aí como um fanático da sua própria obra. Não nos merecem maior admiração aqueles que fazem o que têm a fazer e logo se colocam à margem, e assumem até uma certa desconfiança ou frieza em relação ao que deixaram pelo caminho? Em vez de um deslumbramento consigo mesmos, não são bem mais cativantes os criadores que mantêm uma postura de recusa mesmo quando tudo à sua volta conspira para agraciá-los, fazê-los sucumbir a um efeito de adesão confusa e mole? Perante esses mecanismos, os verdadeiros artistas  provam o seu livre arbítrio e a sua desobediência não acatando os louvores que, por mais benévolos que aparentem ser, ainda assim os rebaixam. E nessa hora em que tantos cedem, é necessária uma convicção absurda, para que se revoltem como quem se salva, recusando essas formas de cativeiro, de tal modo que, no fim, como antecipando a desgraça de todo o monstruoso êxito que lhes estava reservado, Fernando Pessoa, reconhecia: “Ainda bem que isto vai mal, porque isso é a nossa salvação”. Mas para as vedetas dos versos sensaborões que hoje vemos serem mais celebrados por aí, vai tudo muito bem. Parece ser já muito tarde para inventar algo que provoque estranheza e rejeição num primeiro momento, que gere uma verdadeira indisposição das almas, nada disso lhes convém, nada que não seja uma recepção triunfal e unívoca. Se até há umas décadas se esperava que a arte se impusesse de forma arrogante, numa efervescência de diatribes contra a tepidez que caracteriza o regime de abulia cultural, de há uns tempos a esta parte a poesia, como toda a arte, vem-se comportando de uma forma cada vez mais cautelosa e até mesquinha, tudo para causar boa impressão, gozar desse favor imediato de um público que já nem cai de joelhos, mas vive ajoelhado, faltando-lhe o discernimento ou sequer o orgulho para exigir da arte que cumpra a sua função e lhe provoque suores frios, corroendo os seus hábitos e presunções mentais. No actual esquema em que a crítica se tornou algo de absolutamente intolerável, vemos como cada vez mais na arte “todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos” (Gombrowicz). Margarida Vale de Gato provou a sua alergia a qualquer outra coisa que não fosse uma reacção servil da parte daqueles que ousam ler em voz alta os seus versos e retirar daí algum tipo de ilações ou um juízo que não coincida com esse registo pomposamente cordial, rançoso e adocicado. Num dia manifestava o seu agrado por ser alvo de uma prosazinha encomiástica e obtusa, de uma jovenzinha que se aprestou a vir cumprir a única coisa que se admite hoje dos jovens, que é assumirem uma postura admirativa, submetendo-se à hierarquia e distribuindo as bolachinhas para acompanhar aqueles poemas encharcados de chá. No dia seguinte, já manifestava uma leve irritação quando um crítico vinha assinalar o “artificialismo” de tantos dos seus versos, e, por fim, acabou por descoser-se na sua ficção altiva, primeiro esperando uma reacção em cadeia e movida pela cólera dos seus apaniguados, e depois estendendo a procuração a alguns amigos para virem dar recados, e explicar que este crítico tinha, afinal, uma agenda, e que a ferocidade dos seus argumentos assentavam numa rejeição anterior. Como acontece com qualquer posição que é na sua essência conjuntural e que, portanto, assenta na falsidade, MVG sabe que o seu pequeno trono não resulta senão de um regime miserável e superficial, ardiloso e medíocre, e sabe que o seu livro é incapaz de sacudir as suspeitas sobre ele lançadas. A questão é que todo o verdadeiro poeta prefere ser lido com a maior das suspeitas e superá-las, pois nunca como hoje foi tão necessário estabelecer uma linha de demarcação, uma vez que, como frisou Gombrowicz, já há demasiado tempo que aquilo que está vivo se mistura com a morgue. “É preciso que a vida se sinta vida, que experimente a sua crueldade, nitidez, o seu impacto e que comece a traçar os seus próprios caminhos.” Pelo contrário, MVG vive no terror de ser lida deste modo, receando que se torne claro como grande parte daquilo que atesoura nos seus versinhos não é mais que a expressão de um malabarismo para se furtar a dizer seja o que for, e que precisa desse alexandrinismo pedante, desse barroquismo de adorno para cativar aqueles que já só conseguem relacionar-se com a poesia nesse modo exausto, reagindo ao desconchavo de uma prosódia atordoante, uma sintaxe que faz sacolejar o cérebro para que o leitor se sinta tomado de tonturas e se apresse a chegar ao fim da viagem, com um mal-estar provocado pela trepidação artificial, e isto fornecendo as mesmas glosas engarrafadas de sempre. Porque estes leitores exaustos não sabem já como lidar com a frescura reinventada, e exigem aos versos apenas essas buliçosas construções em segunda mão. A primeira coisa que deveria exigir-se a uma poesia que aparece como nova é que não queira soar como algo poderia ser dito por alguma estátua. Que não se limitasse a recitar, não rugisse a despropósito, não dissesse piadinhas. Por isso é que hoje toda a gente evita a poesia por se ter tornado esse modo inútil de expressão eleito pelas capelinhas, por essas associações de adoração mútua. Assim, por mais que nos venham com estas "maravilhas" em regime pronto-a-vestir, não é de espantar que sempre que eles referem estes nomes fiquemos desiludidos, com a sensação de que não se impôs nos últimos anos uma só individualidade verdadeiramente profunda e autêntica, como além disso estamos reféns destas hierarquias espalhafatosas e que dão dó, precisamente porque não há medidas significativas do valor de uma obra poética poderosa e excepcional. Todas essas considerações ficam-se por conjunturas afectivas, enredos emocionais, mitos obsoletos e noções espúrias quanto ao que rima com a velha afeição pelos ritmos espevitados a que o ouvido se entrega amestrado, sem querer confrontá-los.  “Os poemas a vir são para ti e para mim e não são para a maiorpartedaspessoas – não vale a pena tentar pretender que a maiorpartedaspessoas e nós são a mesma coisa. A maiorpartedaspessoas têm menos em comum connosco do que a raizquadradamenosum”, assinalava e. e. cummings. Mas esta poesia que nos servem já com as indicações próprias de toda a refeição pré-cozinhada, já meio deglutida, explicando que deve ser aquecida no microondas depois de se fazer uns furos na película… Ainda que os versos de MVG se sirvam de todos os subterfúgios para simular a ânsia de uma contínua novidade de dicção e métrica, esta revela-se tão patológica como se se limitasse a exibir um exotismo empalhado e que não cobre qualquer distância nem nos provoca a sensação de sermos assaltados por uma largura de horizontes com alguma consequência na nossa vida íntima ou intelectual. Saímos daqueles poemas tal como entrámos. É uma literatura que se reveste de todos os ademanes, se faz de esquisita, expõe-se num garridismo exasperado, mas, no fim de contas, não compromete nada nem ninguém, não há um só verso que se nos lance à garganta e que a aperte, que nos traga um odor revoltante ou uma impressão mais venenosa, alguma noção menos vaga e mais apontada ao coração da época, como uma estaca que possa dar cabo deste baile de mortos-vivos. É uma literatura de relações herdadas, noções adquiridas, dirigida a todos os paladares, que nem busca aquela tensão insuportável e no limite da rotura que caracterizou as aberturas desses espíritos modernistas que tanto procura exibir e finge homenagear.  À entrada da sua “terra devastada”, Eliot inscreveu a fogo estas palavras de Petrónio: “Porque eu vi com os meus próprios olhos a Sibila suspensa numa gaiola em Cumas, e quando os rapazes lhe perguntavam: ‘Sibila, o que queres tu?’, ela costumava responder: ‘Quero morrer’.” Se a mesma pergunta fosse feita pelos rapazes a Margarida Vale de Gato, estou em crer que responderia: “Um prémio literário vinha a calhar e também compunha o ramalhete, e mais honras oficiais, carinhos públicos e depois umas traduções lá fora, bolsas de apoio à criação e viagens para ir em digressão a baloiçar-me na minha gaiola.”

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