Que sobras de tudo isto hão-de acabar a compor alguma vitrine num museu? E terá sido sempre tudo tão frívolo como nos parece agora, a partir das selectas literárias e de todas essas funções de uma memória que relata de forma cada vez mais senil qualquer abertura alcançada por meio de um deslumbramento íntimo? Era esse o mapa em que interessava sujar o dedo seguindo um outro caminho. Lançados na presente desilusão, forçam-nos a fazer uma e outra vez estas perguntas aqueles que representam para si mesmos esse logro de uma nobreza que nunca se deixa iludir. Houve algum tempo melhor, algum eixo que tenha feito confluir esses seres remoídos por febres secretas, e que animavam um mito literário difuso, mas exaltante, estando pouco interessados em representar a elegância dos seus juízos, o acordo musical entre as suas ideias, a tal melodia intrínseca ao pensamento, preferindo ser tidos como maus escritores, e actuando mais como delinquentes no ensejo de se vingarem da cruel solenidade deste mundo? Nalgum momento, depois de longos anos de fastio, e contra esse entendimento comum, adquire-se um gosto raro, um anseio por vozes náufragas e resistentes, por seres cujo rastro no papel tem algo de imundo, e que, em lugar de composições equilibradas, parece que vão cuspindo pedaços de um órgão que tenta escapar ao destino. Aos poucos deixamos de ter tolerância para as composições mais educadas destes que pretendem apenas passar com distinção nas provas, e ser acolhidos no acomodado seio dos mestres. Na margem oposta há aqueles que sofrem de uma estranha doença de pele, que aprendem a viver com uma compulsão desastrosa. Há ainda um mito persistente e que nos empurra para o desacato, mesmo se tanta coisa se perde na transmissão, mesmo se não é possível ensinar coisa nenhuma, até porque “as palavras morrem ao trocarem de boca, a sorte gasta-se ao fornecer os dados” (Fondane). E se é doloroso reencontrar-se sempre com o desastre íntimo nesse esforço para atingir a espessura das coisas, um tipo sente-se encontrado ao encarar-se como num reflexo quando dá por algum desses que andam por aí “através do vómito sem fim do incurável, gritando para se ouvir gritar”. O temor da irrelevância encosta tantos a essa relação burocrática que vai desenhando flores nos muros brancos à nossa volta, e mesmo nesses muros que passam rente ao inferno ainda se pode ler as mesmas justificações imbecis, o mesmo intuito decorativo. Mas houve uma idade em que os fins eram o que menos importava, em que a própria ideia de uma literatura só estava connosco se a perseguíssemos, falando e escrevendo interminavelmente, prosseguindo um delírio dias a fio, e pela noite dentro, sem grande probabilidade de alcançar um contágio, mas gratos por haver ainda essa margem para agir o mais condenadamente possível, descobrindo se se tem ou não a capacidade de suportar o descalabro das paixões, e sair demasiadas vezes do outro lado de humilhações absurdas, envolver-se em ferozes discussões onde quer que seja, não havendo nada em jogo além da possibilidade de levar uma hipótese até ao limite do que a imaginação consegue aguentar. Contra os sistemas que defendem a ordem, o progresso, a moralidade, havia essa relação de forças apuradas no campo do desespero, sendo este a única garantia, pois não permite que em seu nome surjam comunidades estáveis nem nenhum desses condomínios cheios de repartições e de órgãos regulamentares e de serviços de inspecção. Na verdade, a literatura deve quase tudo ao despropósito. “Há na insolência uma rapidez de acção, uma orgulhosa espontaneidade que quebra os velhos mecanismos e que desdenha dos esquemas de legitimação, acabando por levar a melhor sobre um inimigo poderoso mas lento”, como disse alguém cujo nome perdi entre os papéis. Nada é mais desolador hoje do que ir à procura de algum café ou livraria onde pelas conversas ainda passe a sensação do mundo, não se dá por nenhum, por nada que não se fique pelas timidezes e avanços calculados de seres redundantes, que nos devolvem todo o assombro esfarelado, e a própria vida sujeita a noções intragáveis, a ponto de sentirmos o sangue a morder o vazio. E, no fim, essa deverá ser a maior das reservas ou até o argumento essencial que devemos opor à ideia do génio, isto na linha do que Benjamin assinalou na hora de impor uma objecção à forma de vida do celibatário: "ele toma as suas refeições sozinho [... e isto quando] só em comunidade se faz jus à comida; ela deve ser partida e repartida para fazer efeito. Sem olhar a quem: antigamente, um mendigo à mesa enriquecia qualquer refeição." Hoje entramos numa livraria como antes entrávamos numa loja de animais, dando por eles amontoados em gaiolas e celas enervantes. Entre eles codifica-se uma forma de expressão desgastada, bisonha, reduzida à parada mínima, e, se nutrem grandes aspirações, curiosamente isso mantém entre eles um pacto que conduz a um cinismo generalizado. Devemos reforçar a enorme diferença que vai entre essas lojas cheias de gaiolas pipilantes e as árvores que crescem para sustentar a diferentes níveis as selvagens filarmónicas de pássaros. Uma acidental ainda que justíssima descrição do nosso meio literário pode ser arrancada dos diários de Eduardo Prado Coelho, sendo que ali esta passagem se limitava a traçar um resumo das relações entre as personagens de um mau filme: "Ninguém é mau, todos são fracos, às vezes indecorosamente cobardes, e no entanto este carrossel libidinal vai rodando segundo uma lógica do vínculo afectivo, do medo da ruptura e do desejo de 'enganar' (mas é apenas uma miragem: ninguém engana ninguém, todos sabem tudo desde o princípio)." Vivemos devastados por essa ilusão de que os outros se deixam enganar, e sobretudo por essa necessidade de se iludirem a si mesmos. Não havia nenhum futuro para isto, e essa era a grande promessa que a literatura nos fazia. A de se ver investido num tempo ditado pela ânsia dos começos e pelo gozo de se furtar a qualquer fim, suspeitando destes por estarem dominados por um elemento de resignação. Era sempre na ânsia de nos lançarmos noutro assalto ao desconhecido, pela sensação de princípio do mundo que este nos transmite. E se hoje vivemos dominados por sucessivos cenários em que o fim toma conta de tudo, se isto faz de nós já seres póstumos, isso diz-nos o quão distantes estamos daquele desejo imenso que levava a que nenhuma palavra estivesse errada, a que nos fosse possível aproveitar fosse o que fosse, soltar o tipo de “soluço irreal da carne” que leva a que a realidade tenha de se reorganizar para se conformar com ele. Por agora, no entanto, ninguém confia nisto, no próprio gesto da escrita, nessa obstinação em encher-se de sentenças, gritar para se ouvir gritar, ouvindo muito mais coisas do que aquelas que se teve intenção de dizer. Porque há um momento em que a frase se parte, a gramática já não aguenta e o sentido extravasa, arrastando com ele a própria consciência das coisas, e isso normalmente vem sempre dos piores sabujos, os que se aproveitam do seu desespero e actuam como estripadores do idioma, deixam o enredo aproveitar-se de cada inflamação e fractura, somam a partir de elementos inesperados, e com as passagens que forem necessárias, mesmo com uma linha ténue, frágil, absorvem no seu contorno todas essas partes do discurso reviradas do avesso. São os seus próprios passageiros, deixam-se levar por noções só meio murmuradas, ouvidas imperfeitamente, assumindo uma espécie de fé nesse elemento selvagem e tão urgente que há no acaso. Cada escritor elabora de fora para dentro esse órgão produtor de ventos. Depois é preciso lutar com todas as forças para que o buraco não feche.
quarta-feira, setembro 20, 2023
Esse órgão ventoso da escrita
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