quinta-feira, agosto 03, 2023


Queres falar da última estação que nos resta
de chuvas e solstícios, encher as margens
de medições sobre o desastre que somos,
intrigados com o cadáver do próprio tempo,
e como se rompeu o balanço dos ciclos
entrando depois em detalhes ingénuos 
sobre funções vegetais, as gotas resinosas
das árvores que se diz que choram
que têm sacros poderes terapêuticos,
ou vamos contar mentiras como das outras vezes?
Vamos falar da desilusão que somos,
ou preferes notar que há pássaros
que nunca se resolvem a cantar, 
e que saber esperar já nem é um ofício certo, 
versos de tão curta vida perdem-se
numa "multidude fossilizada
de papéis estranhos", não esperes assim
efeitos alucinatórios deste velho jogo,
talvez oiças o bosque ali a rezar, a razão desfeita
de um país meio selvagem, deslembrado
capturado por sons que ficam no ouvido
tantos anzóis para tão pouco mar
e só talvez na imaginação possamos
mais tarde aprender a diferenciar as coisas 
as "sombras maiores de algum jardim
esquecido", o cheiro da terra e as luzes
um mesmo murmúrio em que se dissolvem
as gerações, não te espante assim
esse fruto que não sabe cair,
que cresce sem gosto ou doçura,
sem se juntar à comoção dos pássaros,
às distâncias imensas ou às histórias do tempo.
Recortarei com as mãos algum contorno
imprevisto, decalcando estas tristes figuras
no rescaldo da nossa mísera epopeia,
estes últimos paroquianos dos cafés,
e nesse horário que vai de sexta a nunca
virei com a força de um hábito
desejando sempre o pior desfecho.
Com tanta matéria de combate ainda
devo morrer a tempo de não me envergonhar
e bem que gostaria, confesso, de me lançar
de bruços ao abismo, devorar para sempre 
esse coração que perfuma de inocência
esse gesto que fazes e o outro e o outro.


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