Com Paul Nizan
Vê este casaco e como se tem direito
nas costas da cadeira, o que cada furo
poderia contar-nos desses que se acharam
no limite dos mapas e não tinham mais
que a superfície da pele e os órgãos do frio
e do calor, aquele interior húmido e doce
onde foram esmagados os batimentos do coração
isto tudo se ouve e ecoa no quarto
como a vaga impressão de uma música
que se deixou para trás
tudo o que ainda atrai traças iridescentes
esses ditos de marinheiros que dos ventos
tomaram a entoação profética
e que têm o mar por um mau cavalo,
instável, difícil de lidar,
tratam-no por filho da puta ainda hoje
distribuindo-se já velhos por recantos
enganando a morte,
retirando dos bolsos sinais, destroços
a exalação de outro mundo ou apenas
os restos da claridade de algum universo desfeito
aquele fio de imagens que se perdem
nuns olhos mortais
um nome aberto, um silêncio antigo
e hostil às nossas impaciências.
Se dermos tempo à memória ela saberá
desfazer em espuma todos esses infernos da terra
e colher frutos magníficos junto com a promessa
de verdadeiras reencarnações,
e ainda um pouco dessa água cinzenta
para se lavar o rosto a cada manhã.
É isto o que nos faz tremer
a sensação na boca de tudo o que não dissemos
desse alcance que fica para lá
de toda a sombra terrestre,
e o inventário das coisas que põem
diante de nós a vida por extenso.
Tudo cobra um preço agora que a luz
começa a ceder, já não nos surgem as vozes
como dantes, e aquele cigarro no escuro
parece a vida inteira de um sorriso.
Cansado dessas lendas acerca da salvação,
da suposta liberdade de correr os mares,
tatuei uma pequena âncora,
e desfiz-me em argumentos, convenci-me
que prefiro o perfume fresco da fruta
que apodrece logo e ninguém leva a bordo,
que sabe melhor passar a mão pelo reflexo
de um tanque onde as alturas se afogam
a toda essa abundância de horizontes.
Quietos aqui também ligamos
sussurros secretos, saudamos aqueles
com quem mantemos o nosso comércio de cólera,
aos poucos começamos a encher-nos
das estrelas que agigantam a noite.
De tão sós basta que alguém se aproxime
e ao menor gesto trememos
se a boca se aproxima do ouvido
a menor sugestão soa à aproximação
de certas costas,
quando voam na mastreação pássaros singulares
esse canto que nos empurra devagar
até ao limite de nós próprios.
Então vestimos o casaco e deitamo-nos
entre fantasmas capazes de povoar
o fundo dos mares tropicais, partindo enfim
num acesso de febre como um desses barcos de flores
ou as tábuas suportando o corpo que segue
ardendo pela noite fora.
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