Nunca o mundo nos tratara assim,
deixando-nos sem um só, um quê, onde,
e aqui que mal se ouve, tudo frio, confuso,
e se tínhamos um rasto e o seguimos
tantos dias as noites acumuladas sem pousar
a cabeça nem recompor os ossos debaixo
das estrelas, nem dar descanso aos sentidos,
tudo seguido sem nada enfim achado,
ausências umas dentro das outras, como se
fôssemos doentes, uma dor aqui sem nada
à volta por fora com que se relacionar,
e se nos reviramos parece impossível
ainda que seja certo como começávamos
sempre pelo espanto, soltando um som
que fosse ao rés buscando, a inventar-se
em delicadezas e súplicas pondo reflexos
num cerco paciente a esses contornos
e como desferiam em nós aquele golpe
íntimo de tudo o que mais vibra
num balanço largo de umas coisas
para as outras, mas se agora nos distanciamos
ao dizê-las alto, e desaprendemos a fala,
por não nos chegar à boca nada nem chegar
a boca ou o idioma, e se a voraz alucinação
tornou os ecos insuportáveis, se as musas
se riam e enfim por poucas que fossem
por preciosas as cabeças enfeitam podres
em estacas e zumbem agora nos jardins,
se também as mãos nos parecem detestáveis
rudes para os gestos que antes fazíamos,
perdemos os modos, o acesso, a graça e até
o assombro, e se a vida antes se roçava
provocante e logo esquivando-se fugindo
para atiçar deste lado o sonho e os seus
brutais instintos, hoje cede, não resiste,
deixa-se esmagar sem um gemido, sem terror
nenhum, mas pior ainda, é o sabor e como
parece que troça da intensa memória que dela
guardámos e de que ainda nos alimentamos.
Sem comentários:
Enviar um comentário