quinta-feira, abril 20, 2023



Só líamos os jornais para dar razão a um sentimento hostil e agressivo, trazer a guerra para a intimidade como espelho onde encurralar mais alguns fantasmas. O tipo de ecos lancinantes que guardam as casas vazias,
como um perfume que reencontramos não sendo já para nós. Isso e receber de alguém as notícias da mulher que amaste e que viste com tanto esforço "reduzida a uma voraz temporada
de camas desfeitas". Hoje podes ouvir como morre ainda de riso, se despe e entra outra vez na fogueira que compuseste com tanto cuidado. Depois resta o mundo, ou o fim dele
e essa estranha alegria de se ter desejado algo com todas as forças para agora agradecer o vazio e o seu tremor, esse impiedoso conto em que nos magoa sobretudo a fantasia dos detalhes, como se fosse essa a única aventura
que nos restasse: fixar algum exemplo, ocupar o tempo com a memória. No seu último postal,
dizia apenas "aqui faz demasiado calor", como se não estivesses a perder nada. Talvez não. Mas, desde então, ninguém mais quis fazer o café, lavar a cara, limpar os cinzeiros, e quando a noite ficou quase completa, nos bares a tristeza tornou-se mais apetecível que a própria beleza. Falava-se muito do sul, ainda que não fosse claro todo o seu alcance. Tentávamos decifrar fotografias desfocadas, as linhas negras de caminhos perdendo-se, e com o dedo sobre o papel medir a distância exacta. Enfim, só nos restou aquela crueldade que adoça o desespero, e então escrevíamos cartas usando como selo uma abelha afogada em mel.


 

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