quinta-feira, fevereiro 23, 2023

 

Para o Changuito


Ainda dormimos nas nossas mãos,
ainda dependemos dos pássaros
para nos erguermos, para que a manhã não
nos escape inteiramente, 
para que o dia faça o que faz ainda
que a carne lhe fique alheia.
Estão distantes muito mal escutadas
as coisas que importam,
há uma bebedeira há muito aguardando, 
uma noite eficaz enfim, essa
para onde apontam os aflitos.
Há mais qualquer coisa viva, há gestos
ainda capazes de perturbar o tempo.
Precisamos que alguém o leia para nós
leia alto os signos que temos à frente,
e os revezes, os regressos e a raiva,
que sopre, que mexa nos sonhos
como se mexe com a colher na chávena.
Dobro-me sobre o joelho, ouvindo-o
e desenho a lápis um navio, ele range
no meio de alguma tempestade.
No andar de cima um miúdo chora
e nós por baixo no escuro lançados ao mar
ouvimo-lo ler Camilo Pessanha
fumamos os cigarros que ele pousa 
com o fumo a desenhar um fio, uma linha
e ele cosendo da noite os contornos mais finos.
Somos arrancados de baixo para cima, 
em todos os sentidos,
não pela carne, mas pelo vazio,
as chamas que se adivinham já.
Isto range por todos os lados, 
o meu navio sofre e passa mal
chocamos em tudo, desfazemo-nos em espuma
Outros fazem algo parecido, mas horrivelmente 
e dão completamente cabo do infinito.
A qualquer hora estão aí as notas deixadas
pelos pássaros na pauta, há um acesso
para essa noite do outro lado disto,
da vida, e um homem passa muito perto
cantando embaraçado a canção que não o larga.

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