sexta-feira, dezembro 02, 2022


De tanto insistir torno-me um ser
mal escrito, sem cortorno certo,
rasando as paredes no tumulto
de ir lendo com a pele essa balada
dos corpos que se movem suspensos de fios
como de uma música inaudível, 
debruço-me sobre eles
como sobre as luzes ao longe,
testemunhas da nossa dissolução.
As imagens são hoje as cinzas deste mundo
e o silêncio dói como nunca.
Podes ficar por aí, e ficas, tentando de tudo
com esses olhos, e às tantas é a atenção
que se torna pornográfica,
o modo como a olhas, a sensação
de que seria preciso um tremor de terra
para te interromper. Só as flores exibem
maior determinação, demoram-se
até à morte, e apesar de toda a elegância
são a carne de um fascínio que um dia
decidirá pelos deuses sobre o interesse da vida.
Nem precisam de mãos para nos deixar cair.
Quando deixam de nos dar corda,
há uma tristeza para nos enraizar na cama
por séculos. Enquanto o seu perfume
nos envolve, podemos vingar-nos 
da nossa brevidade, e a noite torna-se tão densa
que se pode bebê-la. Não sabe melhor
nem pior que algum vinho,
mas deixa-nos marcas espantosas para os dias,
sinais do excesso, tudo o que trocamos
mais perto da cama. Quebrados os espelhos,
os reflexos vagueiam entre a minha
e a tua memória. Estou a ver-me ali de pé
com os dedos no interruptor aguardando
a expressão perfeita antes de apagar a luz 
e reter para sempre o instante
em que a intimidade me servirá
a sua flor mais indelicada, um sorriso igual
ao que me mostrou sempre o escuro.


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