segunda-feira, dezembro 12, 2022


Sem tirar a roupa toda, aquilo primeiro,
isto depois, o que sabemos fazer um
do outro enquanto a vida não o faz melhor,
desfazendo-nos de vez. E nesses ensaios,
de passarmos tanto tempo na cama
vamos aprendendo sobre astrologia,
religiões antigas, a surpresa das luas, a 
convicção das flores contra o muro,
pomos hipóteses rudes, raras, e vamos
afinando os resultados atentos às vozes
que seguram o mundo, suaves como sombras, 
o peso de um barco sobre os papéis,
a espiga de trigo irradiando de sol
dentro de uma garrafa, essas anotações
que aos miúdos servem como documentos,
como se foge de casa aos doze anos
como nos parece que o vento trespassa
a flor que sem se alterar logo
se desfaz do corpete de aspas e dança
e o chão parece revolver-se no gozo
de beber o seu reflexo. Fazemos distâncias
num respiro, o corpo inteiro chega a ser
apenas um modo de atar tudo e sustentar
a boca, os dias que interrompem o curso
das coisas, esse gesto de quem larga
um bando de abelhas bêbedas
sobre o tabuleiro e inventa o seu jogo
enquanto declama uns disparates 
embebidos no mel de noções extintas,
a pose desafiante de actor, meio ridículo 
meio deslumbrado com o texto que decorou
antes que o pudesse entender, e só depois,
nos ritmos que força e a que se entrega,
o descobre entre variações impetuosas
e contra todo o naturalismo,
contra a vida de castigo das telenovelas,
o sentido logo surge em debandada,
com o seu balanço absurdo,
a harmonia quase delirante, e ele ferve
e agarra quem puder e despe-se,
e beija-a porque a cena lho exige,
interrompe-se, põe-lhe um dedo
na cova do queixo, interroga-a,
faz-lhe as acusações mais abstrusas,
causa-lhe arrepios, faz com que se ria,
enche bem a mão com os pêlos
sobre a cona e puxa-lhos depois sopra
e morde de leve e passa a língua toda,
aspira e crava as consoantes e deixa-lhe
as vogais, e isto menos por capricho
ou apenas desejo do que rendido
ao entusiasmo de fazer da carne um candeeiro
recortando figuras, enchendo as paredes
do seu cinema, a alegria inebriante
da acção sem um porquê, mas tão-só 
pelo talento que há nos grandes amantes 
para se exibirem, esse ânimo exemplar 
com que voltam a fazer da cama um palco.


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