quarta-feira, novembro 02, 2022


Alimenta um velho ritual aquele quarto
que olhávamos da rua, na cerimónia de quem
levanta a vista e se demora
do outro lado do passeio admirando a ausência, 
buscando um sinal da mecânica íntima
que sabem imprimir num espaço 
os que se refugiam para forjar distâncias,
longos caminhos sussurrados
num suave testemunho contra este mundo.
As antigas forças ainda comparecem ali:
um anjo, um telefone, o silêncio.
Às vezes há um destino quase intocado
que se retira do lixo de alguns homens,
a ameaça de uma música
de que perdemos o rasto, aquele tumulto
em que nos revezávamos diante da fechadura
onde afiámos a vista, vendo-nos de costas
como sempre ficam as coisas
retidas pela memória, 
sem saber qual daqueles miúdos fomos, 
longe da doce bulha em que se encavalitam
para vê-la despir-se, tudo o que hoje
nos parece meio irreal, já o corpo
não é mais que uma âncora, e há um frio
que atravessa a vida e detém todo o ritmo.
Os que se aguentam lembram meros recortes, 
estes vultos que quebram o piano,
lhe puxam fogo e se aquecem à volta.
Em vez da melodia, consola-os mais
ouvir os soluços da madeira,
a despedida das florestas
que as notas despertavam. No fim,
da sala inteira, dos tantos concertos,
resta um caderno, folhas rasgadas ou
riscadas e, pelo meio,
apontamentos lancinantes,
estranhos e selvagens detalhes,
e a sombra da mão que parece ainda
perturbar o livro. Algures, num quarto
que se vê da rua,
os poucos gestos de alguém
queimando, vivo, o seu fantasma
para que uma luz regresse e venha até nós 
embalada no respiro daquele
que nos observa do outro lado da vida.


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