sexta-feira, novembro 11, 2022


Comemos nas mesas mais baixas
por gestos de despedida
alimentos cujo sabor faz tremer os espelhos,
roubamo-nos através de reflexos,
comemos as maçãs dos mudos
esperando que os sons
nos levem mais longe, recitando
com outros lábios.
Oferecemos esse cuidado próprio dos sonhos:
toma os olhos e as mãos, estas coisas
de água, o modo de vir esperar-te
teu namorado, forasteiro,
embalando-te ao segurar a respiração
junto de tua cama.
Ele veio e foi tantas vezes que do quarto
já se perdeu a origem, o rasto
e até a história,
mas ouve-te ao longe,
e talvez seja a tua sorte o tanto
que tem chovido dentro de casa.
Vemos flutuar o seu reflexo,
o olhar suave,
a santidade de quem se deixa devorar
pelas coisas mais vulgares,
de quem se move perseguindo
as musas menores.
Um rosto acaba por tornar-se belo
nalgum retrato, se o tempo
puder fazer o seu trabalho.
A vida reconhece-se pela fragilidade,
pelo modo como tudo se torna impossível,
como parece ser o amor que quebra
as coisas, como os cacos ficam por aí 
sugerindo histórias irrecuperáveis,
caindo entre sombras
que se parecem connosco. Este nem é
o meu primeiro sonho com náufragos
e também já o sinto perder a expressão,
mas como sempre nos sonhos
a água é fria e escura, e não deixa
qualquer reflexo manter-se à superfície.
Agora, demora-te para lá do teu tempo,
vê como cintila o terror entre desconhecidos,
as sombras geram uma corrente forte:
sacode-me, embebe-me a manga de água
salgada, e oiço
esse grande alarido de tudo o que aguarda.
Pode ser que nos leve dos lábios
o gosto do que nos dissemos
e se parecia com o riso do mundo
antes deste perder
a importância que lhe dávamos.


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