segunda-feira, outubro 17, 2022


Brincar com a mão morta de Panero, o doido

Deves poder escutar daí 
a tempestade ordenada
dos versos frios que hoje se escrevem
como um desfile de fantasmas 
procissão de estranhos
que nos fazem sinais, comedores
do vazio deixando migalhas
sobre a página, tão longe tudo isso
do resplendor da miséria
o canto extraído a uma contracção
do silêncio, canário pousado
num ramo que não lá está, e o fogo
consumindo a árvore para nos fazer
sentir os dentes da página
e ver como a flor
é só um traço, o gesto aperfeiçoado 
desse que antes de cortar a mão
ou a orelha ou outra parte
de um corpo que não lhe sabe
nem já o levará mais longe
explora com uma vela
o deserto branco da página
estende a palma da mão
como se ainda pudesse comer nela
os seus restos, busca as peças
estuda o mecanismo de um grito
o tremor surdo da beleza
esta que repousa por um segundo
se deixa olhar mais um pouco
para se esculpir o verso
se extrair o silêncio todo
que impede uma cidade de desmoronar
e assim, abertos os olhos para sempre
crava-se outra flecha no mais antigo torso
oferece-se à memória o beijo do insecto
provando quanta dor é necessária
para se medir um verso
sem prescindir do anjo
nem do desastre ou da paciente fé 
daquele que atravessa rezando o deserto
para colher enfim a flor que soluça
aquela que converte andrajos em silvos
a desse que beliscou a superfície do poema
e nos mostrou que não há pele
nem há vida nele
esse que perseguiu a mão imortal e o olho
através dos quais alcançamos
esta aterradora simetria
o corpo doce e sem vida do poema
pois nada há de mais valeroso 
que escrever de frente para o vazio
impor essa flor de puro nada
a flor que insulta todos os homens.


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