terça-feira, outubro 18, 2022


MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO

Mais para interior é como se vai
à minha terra, que fica lá, para outro tempo
com as coisas adoçadas pela falta
que o mundo nos fazia,
essa invenção mirabolante de miúdos,
e a escola era uma mesa muito grande,
por idades como por postos éramos
uma autêntica tripulação,
andávamos sempre à procura
tendo os astros por uma música
aprendida com os mais velhos, decorada.
Aquela ansiedade toda delirante
de achar que se chega, que se agarra
induzidos pelo encanto de dizer
os nomes das coisas,
mas depois, nesta vida,
nada existe em estado puro.
Há que juntar para a outra.

Estávamos perdidos e nem sabíamos
como essa era a nossa sorte,
naquelas casas libertas de todos os caminhos,
casas aonde o vento punha os lábios
e soprava pelas frestas, o soalho antigo
rangia fazendo tremer a imaginação
e a luz da lareira balouçava tanto
que abria em flor as sombras
dos muitos que trazíamos por dentro.

Nessas casas, parecia que estávamos
em empurrões de barcos, e de volta
paisagens fermentadas pelas falésias
e pelo próprio infinito, e o balanço também 
de admirar os montes, como cães ganindo
a sua forma monstruosa e a sua eterna imobilidade,
mas ali onde fomos colher rosmaninho,
alecrim, acácias floridas, aprendi
a esganar os rios contra o meu corpo,
a dormir descansado e grande,
depois, e em volta da casa,
o que havia sobretudo era a noite,
enorme total devoradora de formas,
essa treva imensa que nos velava os sonhos.
E não havia onde se esconder desse susto,
desse terror benigno do mundo.

Fiz-me marinheiro nessa infância,
e charlatão, ali onde arrasto os móveis
no pequeno quarto que tenho na eternidade,
sou o projector dessa película impressionável,
e vejo-me antes de tudo o que depois fiz,
dos livros, da imensa vinha e dessa última flor
à beira de um novo século. Fico aqui
no meu quarto com o meu avô
quando ia podar e me levava com ele,
deitava-me no casaco aberto nessa altura
que era a das primeiras ervinhas e flores,
e enquanto cantava aquelas canções
o Pinhão vinha com fragor por ali abaixo,
sentia os lampejos do sol nos açudes,
e isto era uma coisa fabulosa para os meus
sete anos: acordar num casaco a cheirar
a tabaco de onça, e ficar a olhar
águas límpidas, rosas, pereiras floridas,
tudo isso que me enche os sonhos.

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