Que ideia se faz dos velhos num país onde a memória e qualquer noção de antiguidade são sentidas como uma espécie de recuo e fantasmagoria, porque nos recordam da triste música que toca há séculos nesta caixa lerda, e de como esta foi sempre uma nação cruelmente delapidada por um pequeno bando de abusadores a que, em sinal da nossa desgraça, continuamos a referir-nos como “elites”? Que se diz de uma sabedoria dolorosamente recolhida, ulcerada pelas ilusões de sempre e odiando essa eloquência emparvecida dos que estão deslumbrados com a sua ascensão, uma sabedoria que dificilmente encontra a quem deixar a sua herança, e vê uma juventude embrutecida desluzir o ímpeto e a rebeldia que lhe cabe em consumos descerebrados, em jogos sociais narcísicos e lógicas de escapismo, sem desejo de afirmar qualquer diferença de postura face aos pais, rejeitar a visão das coisas que lhe é forçada, o regime de exploração, competição desenfreada e indigência a que é sujeita, declarando guerra aos privilégios e ao conformismo daqueles que gozaram dos efeitos da democratização e do período de mais rápido desenvolvimento e melhoria das condições de vida garantido pelo influxo dos fundos europeus, apenas para sufocarem os filhos e os netos num enredo de crises sucessivas, bloqueando qualquer renovação nas estruturas sociais e políticas, ou dos canais mediáticos à sua sombra, e impedindo também qualquer regeneração das instituições de ensino ou outras. Todos sabem como vivemos prostrados há décadas, reforçando o sistema de castas que havia caído com o Estado Novo, para que depois uma mesma geração fosse do esplendor ao cadafalso, depois de ter reduzido a vida pública a uma mesquinha intriga onde participam os fantoches de sempre, com um aparelho partidário que não passa de uma insuportável telenovela cretinizante em que os actores se vão revezando sem deixar de proteger os interesses de umas poucas famílias e os esquemas financeiros de que se beneficiam, contratando os seus sequazes na província, aproveitando os piores vícios do capitalismo sem, no entanto, dar qualquer hipótese à autonomia privada, às tensões revigorantes do mercado e à afinação de um sistema regulatório minimamente empenhado, garantindo o estrangulamento da economia. Ao mesmo tempo, e para neutralizar qualquer resposta, instigam-se as rivalidades entre classes profissionais, fragilizando médicos, professores, promovendo a proletarização de um sector após o outro, agastando-nos com estes separatismos artificiais, alimentando um ambiente de suspeita com notícias plantadas nos meios de comunicação para descredibilizar aqueles que se organizam nalgum esforço de protesto, neutralizando os focos de resistência enquanto prosseguem uma política de apartheid social, forçando os mais desfavorecidos a abandonarem as cidades, a serem impedidos de circular livremente, e a ficarem confinados a guetos nas periferias, de onde saem num registo pendular nos autocarros e cacilheiros apenas para limpar as casas, recolher o lixo e executar as tarefas mais debilitantes e degradantes, em troca do salário mínimo, e ficando sujeitos, nos períodos cada vez mais curtos de lazer, a uma crescente marginalização simbólica e estética. Enquanto isso, ao redor desse aparelho temos este ambiente de miséria cultural em que os intelectuais e artistas se deixam organizar numa hierarquia clerical, em capelinhas infernais, aceitando subornos, umas avenças e subsídios, vivendo à míngua e andando engalfinhados, assim oferecendo o espectáculo daqueles que se debatem pelos restos que os senhores atiram aos cães para sua diversão enquanto emborcam os digestivos.
quinta-feira, julho 14, 2022
O sistema de castas da vida portuguesa
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