Cortar-lhe a língua ou a mão, obrigá-lo
a alimentar-se de insectos, beber veneno,
não ter as forças sequer para juntar as letras,
furar-lhe os olhos, roubar-lhe a luz exterior,
não lhe dar papel ou tinta, deixar que se rasgue
em pedaços, que culpe os astros, a rotação
das coisas e o impacto sobre os seus nervos,
muito em breve não haverá sobre a terra
outro coração que faça tremer o nada,
que obrigue as distâncias a responder-lhe,
e que, se perseguido, empurrado para o inferno,
o aniquile. De ora em diante só génios frágeis,
desculpando-se do pavor e mesmo
de um leve incómodo que possam ter causado.
A vida deste foi uma sombra tentando em vão
defender-se do tumulto provocado pela obra,
ali onde o caos fervia, por cada haste
tragando o vento, urdindo um aroma,
quantos espinhos se desembainhavam;
uma só flor inclinava toda a árvore,
atenta a luzes esquivas, sombras selvagens,
como se desejasse livrar-se do cerco
dos velhos ventos no seu drama sem acção.
Sempre me pareceu que as naturezas fixas
têm em si o desvario das feras confinadas,
sempre achei que era esse o modo
de se entreterem os condenados,
combinando ninharias segundo uma ordem
e um ritmo que se entranhasse na carne,
espanto não tão diferente do que serve
a esse coitado que a si mesmo murmura
no escuro, e refaz assim a sua vida imaginária,
que decompõe a intimidade em tantos,
derrama a pouca água que lhe resta nas mãos
e sobre a sede desenha gestos graves
como se adivinhasse um desastre
ou alguma dessas coisas que nos obrigam
a falar devagar, a sentir a suspensão
entre cada respiro, o espaço entre as estrelas
a comprimir-se de tal modo que as sílabas pedem ar.
Depois do teu nome ficar gravado na pedra
já não há cura. Tudo acabará por ceder.
E até o que houve de sobrenatural no canto,
de mais corrosivo na língua ou nefasto
nesse modo de falar afinando o silêncio
para que se abata sobre nós e arranque
como um dente pela raiz a vaga esperança
que nos segura e nos impede de ir até ao fim.
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