quarta-feira, julho 20, 2022


Uma laranja já seria suficiente para sujar
isto tudo e aquecer o hálito, 
engrossar os dedos, fazer gestos enormes
e saber por que os pássaros estão todos
tão felizes do seu cansaço.
Por qualquer razão humilham-nos agora
que deixámos de cantar, preferindo uma pedra
que se apanha e se troca dias depois
por uma outra ali, deslocando os caminhos,
encostando o corpo a aragens num ir
como a perder-se da vida. Ela
já me esquece, e as estrelas não se admiram
do meu reflexo junto ao seu brilho,
finjo uma atitude natural ao abrir um livro,
mas se leio duas frases já sinto 
que algo se mexe, tremo, ponho-me à escuta...
Os mortos metem-se-nos nas ideias,
trazem medidas irregulares, 
ruídos extintos e perdidos, o balanço 
dessas histórias que a água conta,
vazios que se repetem, sombras que perduram,
trovões lentamente devorados por flores.
Eles encaminham-nos para o fundo
da noite, dão-nos o pior exemplo,
abalados por humores imprevisíveis 
apontam e insistem como Jim Harrison 
as centenas de milhares de luas
que se afogaram daqui até ali
e como não há um único túmulo que o assinale.
E puxam-te, sovam-me, sacodem, arrastam-nos
jurando pelas mães que é a última vez,
são capazes de um ar tão sincero,
tocam o fio tenso que mais nos comove,
guardam aquela estranha urgência
que é propria dos condenados,
cantando aflitos com a voz que logo se perde, 
parecem miúdos inventando rituais tolos,
frases absurdas que deixam a meio
num idioma doce e desleixado, e andam
como quem se adianta às coisas
para não chorar nem fechar de vez os olhos,
desenham-se entre gestos enormes
como se assim a vida não pudesse deixar
de se impressionar com eles.
Muitos até se anteciparam,
fizeram-se de valentes, e esses são 
talvez os que mais se empenham
e nos vêm dizer como a morte se tornou
a coisa de que mais se arrependem.


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