Em tempos, a irresponsabilidade assumida pelo poeta prendia-se com uma rejeição de todo o compromisso, de qualquer orientação que limitasse o seu ensejo e o ânimo para acicatar a matilha dando-lhe a cheirar os pedaços de roupa arrancados de algum sonho inclinado sobre o futuro. Hoje, porém, assumir-se como poeta já não é uma carta-branca ao abrigo da qual pode arriscar-se as conjecturas mais mirabolantes ou estapafúrdias, mas também virulentas, no esforço de caçar uma presa inaudita, e significa simplesmente que o poeta se reclama da possibilidade de ser inócuo e medíocre impunemente. Nem quer que o macem muito com as formas com que se vai amanhando para obter algum favor seja no que toca a prémios ou outros modelos de promoção mediática. E já se serve até do “descaso” a que é votada a gente das letras pela sociedade em geral para fazer passar a ideia de que tem de se pensar é num regime de pronto-socorro, para salvar o interesse superior das coisas da literatice e o seu prestígio. No entender do antigo-ministro da Cultura, e rabiscador de versinhos em guardanapos à margem das patuscadas com alto patrocínio, e considerando que “os livros cada vez menos lidos, o valor simbólico de escritas e escritores na sociedade e no espaço público em decréscimo crescente e evidente, tudo isso causa preocupação e repúdio”, a solução em vista não poderá ser outra que não passe por dar a patinha, buscar colo e consolo junto das instituições públicas e privadas, acorrer a todas essas oportunidades que o poder estende quando se quer fazer ver na companhia dos “artistas” e gentes da cultura. Segundo este modelo de “estatização da cultura”, os autores fazem bem em adaptar-se ao empreendedorismo parasitário, buscando favorecer-se nesse ambiente em que a cultura se impõe como mera cenografia, uma cultura para afirmação do prestígio das instituições, dos valores da identidade e “coesão nacional”, e não é difícil encontrar sempre um vastíssimo elenco de intelectuais ou artistas que estão mais do que disponíveis para participar enquanto figurantes nesse cortejo político. Com isto, naturalmente, dispensa-se o teor crítico e o timbre combativo da criação cultural, o que impediria que a cultura fosse entendida como mercadoria, um produto como outro qualquer a ser exportado de forma leviana, com o valor acrescido de ir acompanhado dessa aleivosia patrioteira. Isso leva a que a literatura que se promove seja “sempre cómoda, palaciana, perfeitamente acessível à placidez de teses universitárias num país em que, tradicionalmente, a Universidade se destina à formação de funcionários públicos, cujas aventuras espirituais, como é lógico e decente, devem confinar-se nos limites de um regulamento disciplinar” (Jorge de Sena). Se nos cabe suportar a infelicidade de uma época em que é a isto que nos condena a intervenção dos poderes públicos, então caberá aos poetas aceitarem o facto de que não há um circuito comercial para aquilo que escrevem, uma vez que, pondo de parte as novidades mais frescas, aquilo que de menos indigno se tem publicado não demora mais que uns meses a desaparecer das livrarias e, depois, como se sabe, só por sorte vai surgindo nos alfarrabistas, para educação das traças. Não deixa, no entanto, de ser curiosa a reacção de um ex-dignatário, e logo aquele que é, entre nós, o exemplo acabado desse lirismo oficioso, expoente do mofo e de um cálculo bajulador, o que o levaria a publicar a sua obra reunida enquanto estava à frente do Ministério da Cultura, o que, de resto, é bastante aclarador da atitude de um molusco sempre alapado a esses lugares estratégicos em busca de prebendas, alguém que, depois de ter sido dispensado do cargo num sms, com António Costa a livrar-se dele como quem descalça um chinelo com o outro pé, veio dizer que foi sua a iniciativa de deixar o cargo para se dedicar a outros projectos. E que projectos poderão ocupar alguém que desde então vive azamboado entre festivais, mesas redondas, programas culturais, júris de prémios. Mas para que não se venha armar em paspalho e ainda tentar zurzir seja quem for com argumentos absurdos e superficiais, para se demitir logo de qualquer papel crítico, antes defendendo, e com quanto de patético, a postura conformista e a adormentada consciência, afirmando com descaro que “a benevolência dos poderes públicos permite vender lá fora o nosso património literário e dá-lo assim a conhecer a um público mais alargado”, é bom sacudi-lo bem como se faz com qualquer capacho. E, aqui, convém lembrar a Castro Mendes aquela que é a única garantia contra a dissolução do papel da literatura, e da poesia em particular, para que não redunde em mais um desses discursos apropriados pelos cortesãos em redor do poder. Sendo certo que é impossível envergonhar uma figurinha que não encontra maior satisfação do que ver exibida a sua poesia “verga e enfeitada”, com esperança de que esta venha a ser levada a um público mais alargado, podemos pelo menos aproveitar a oportunidade para ir mais longe nessa convicção de que a literatura ou a poesia nunca se confundem com esses amolecimentos viciosos, e uma vez que o título da sua crónica é “A literatura e o poder”, talvez valha a pena relembrar ao ex-ministro e a outros como ele, que se contentam em consumir e recomendar produtos poéticos assim identificados pela sua desvitalizada relação “teológico-métrica”, um ensaio de Enzensberger, “Poesia e Política”, em que às tantas o poeta e ensaísta alemão nos lembra que o poder político, despojado da sua aparência mítica, não pode reconciliar-se com a poesia. “O que se denominava antes inspiração, agora chama-se espírito crítico: o espírito crítico converte-se na fértil inquietude do processo poético. Aos olhos do poder político a poesia é anárquica, porque fora da sua própria órbita não lhe é dado reconhecer nenhum outro ‘princípio’; ela é intolerável por insubmissa; subversiva pelo simples facto de existir. Com a sua mera presença, constitui um desmentido da propaganda oficial e das declarações políticas, dos manifestos e das bandeirolas. A sua missão crítica parece-se com a do miúdo do célebre conto, que nos lembra que para se dar conta de que o rei vai nu não é necessário assumir qualquer ‘compromisso’. Basta que um só verso rompa o clamor inarticulado dos aplausos.”
terça-feira, julho 12, 2022
Eis sua eminência vesga e enfeitada
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