Qualquer reflexão que, a um dado momento, se esforce por divisar um regime um pouco menos superficial ou genérico do que é o campo literário não abdicará de ter em conta um certo elenco, fazer a crónica intersticial que permite depois ligar as partes, reconhecer as obras e as mutações que foram ocorrendo, e para isso é indispensável perceber certos contrastes, desde logo entre figuras, figurões e figurantes, entre autores empenhados de forma mais ou menos discreta, e os pelintras que se amatilham e mais não fazem do que atazanar a paciência dos leitores a partir de umas supostas margens que tomam conta de tudo como uma gangrena. Assim, vimos surgir entre nós este púrrio Rasputin, colando-se a figuras de verdadeiro magnetismo como VST ou Al Berto, o Paulinho surge sempre como uma actriz protelando a sua aparição, nuns travestismos com luzes por trás de um vidro fosco, alguém que se cansou de ser apenas a madame de companhia que lhes lia a fortuna e foi-se revelando uma espécie de ratazana emplumada que eleva um sol de cartolina preso num fio de pesca enquanto canta de galo frente a animais de quinta que, de tanto lerem biografias de génios selvagens, andam por ali engalanados como umas Bovarinhas sonhando-se congeminadores de golpadas anárquicas, nessa capelinha mortuária em que todos prenunciam já os reles fantasmas a que sucederão, esses nomes nos depósitos, os livrinhos de que ninguém se livra por terem sempre dedicatórias xaroposas e que, por fim, acabam atirados ao lixo com uma velha cómoda e um sofá todo encardido pelas sobrinhas ou vendidos a peso aos dissipadores de bibliotecas. Acabam por nos lembrar esses escaravelhos do deserto empurrando a própria merda, criando uma bola maior do que eles mesmos, toda a vida como uns Sísifos desgraçados, desfiando um ego minúsculo que, para não se sentir inteiramente esmagado face ao que vai conseguindo admirar, se empenha nessa tarefa meio ridícula de transportar as suas excrescências como ornamentos que possam vir a decorar um suposto Parnaso. De entre estes, o Fialho e esse seu amigo imaginário que encarnou no à-Domingos são uma dupla estilo o burro e a burranca, um cintilando por comparação com o outro, o primeiro filosofando por aí, como os imbecis que saem da sala de cinema a fazer crítica em voz alta tentando que alguém mais os ouça, enquanto o outro o segue e lhe dá corda pelo modo como de tudo se espanta a não ser quando se distrai com as moscas que lhe pousam no focinho como nas ideias. Depois temos no Cameira um acólito meio troglodita, espécie de órfão intelectual que se transfere como os chatos entre a rapaziada que vinga nas bezerras a falta de jeito para o verso rapace e um tipinho cujo único talento é ser absolutamente desprovido de talentos e que resolveu que faria as suas travessuras e os ritos de iniciação que antes ninguém se deu ao trabalho de levar a sério tudo para ser acolhido entre os que fazem chichi desenhando os nomes nas traseiras da igreja. Já o Cabrita, neste rol, surge como um escroque mais ou menos inofensivo, que tanto se bate pela reedição de um autor soberbo como João Pedro Grabato Dias, do qual ele mesmo pode ser considerado uma espécie de manso epígono, como depois é capaz de nos impingir o Fiat Punto todo batido da vizinha como se fora um clássico só porque esta lhe empresta o espaço a mais que tem na garagem para ele ter lá os desmazelados restos dos tantos golpes que foi tentando dar na feira das letras. É sobretudo uma máquina de sujar roupa e fazê-la cheirar ao génio de outros, mas tem pelo menos algum talento para os saber reconhecer a partir do momento em que sejam suficientemente estrangeiros ou desde que, estando mortos, não possam já fazer-lhe sombra. No que toca aos vivos, deu-se conta há muito de que é melhor não os apoquentar com noções de profundidade e afundou-se nas suas dioptrias, gerindo-as com oportunismo, preferindo até rodear-se de escribas menores na esperança de um dia vir a figurar como o grande vulto à cabeceira de uma mesa a perder de vista, essa vasta e ruidosa manjedoura que defende como se se tratasse do corolário cultural da democracia. Que diferença faz que seja tudo muito medíocre, desde que não parem de encher a mesa, desde que possa empanzinar como sempre fez, saindo sem pagar a conta? Vai e volta, alimenta-se do anho, emborca o vinho, prossegue com a sua missa, massajando a cabecita dos anjinhos, para depois se levantar deixando para eles o frango.
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