E agora o que se diz aos senhores?, obrigadinha, sim, e muito, por nos vermos presos de roda do mesmo, como cavalinhos de carrossel, engolindo, forçados ao ritmo mecânico, à musiquinha cabisbaixa, a uma gente que vem passear e que se faz ouvir com os tempos verbais todos roídos. Sabe-se pela fraca postura destes seres atascados nos limites dos seus corpos como a acção não serve já nenhuma reviravolta, como o fundo desânimo não é sinal de avaria, mas de que a mola do pessimismo saltou sem efeito, e como cumprem apenas com as aparências, e quanto a homens, só muito contados, coisa de trocos, e como a palavra é um resto de quem agradece o prazer de ter com que se coçar, um pau incapaz de ferir, um resíduo sem a lembrança da coisa que houve antes: aqui é o limbo, mas além era o quê? Nenhuma promessa ou castigo mais severo, foi tudo arrancado dos registos, ninguém tem ideia de onde haveria espaço para se pôr o inferno, nem das dimensões que tal empreitada exigiria, ou que espécie de penas faria sentido impor. Serve para dar uma ideia de realidade o velho parque, a praça, o largo da matriz, a paróquia cultural, algures um sino tropeçando de bêbado, mas os portos são apenas cenários, ninguém encheu mais navios, e também se fez um tecto para que as estrelas nem incomodassem, ninguém se distraísse com essas dimensões que por vezes nos gelam e enchem de tonturas, e o tempo que sobra é coisa de ratos, as moedas não tilintam mas guincham também, cada um rói para seu lado, e a realidade de tão esburacada não contém coisa nenhuma, não segura nada. Os ratos são exaltações falsas, a ilustração grotesca da redundância, desses fins de mundo incapazes sequer de pôr fim à sua miséria, não passam do ronco de um estômago que se fez criatura para devorar-se a si mesmo. Ganhou patas, distribuiu-se por aí, como um mau cheiro que cheira o seu caminho, e que, para cumprir a sua função, se entretém cada um desses ratos com a superstição de gestos criadores, de preces ainda armadas de fervor, mas com a ânsia absurda que têm em ser ouvidos, se lhes emprestamos um par de horas, só têm histórias de encarregados, esse romance único e sem saída, a História sanitária, com uns personagens que mal aguentam a convicção do relato, não têm o suficiente para a matéria, a verosimilhança, as descrições e os sucessivos episódios com aquele cheiro a despegado, partes de um conto que se fica pela moral, pelas letras meio sumidas de um cabaré onde agora enforcam os últimos foliões e, aos domingos, onde um bispote dá a missa, ali a comunidade reúne-se e cumpre as suas abluções, ensaiam as velhas descomposturas sem ânimo nem ira, reprovações mansas. Cada enche o frágil peito para alguma denúncia, e o resto da chibaria urra para espantar esse tedium vitae, mas faltam-lhes já crimes esplendorosos para excitar os nervos, acender as velas da imaginação, e nem um casal trocando tiros, a servir de escândalo e recreio para o estupor da vizinhança, só o pão duro que são essas dignidades dos miseráveis. Como lhes falta tesão em tudo e só pregam com pregos e entoam hinos uns para os outros, trazem a poesia como religião de reserva, essa que serve para exaltar as babugices de uns otários, como um perfume que lhes disfarçasse o cheiro que nem é mau, nem fétido, é só cheiro de roupa abandonada, de corpos que deixam um resto de inexistência e desaparição, condenados uns aos outros e a mortes fungíveis, em que cada um sente menos a falta do outro do que se belisca sem a certeza de não ser ele mesmo quem estão a enterrar. Depois, por pura bazófia, dizem que de cada vez que põem a caneta no papel inventam o mundo que falta, o balanço e o rigor. Quando lêem, exibem os dentinhos curtos de tao limados, a língua que se lhes revira na boca como um peixe num balde, e acham-se munidos de um destino fascinante, falam na ambição de plantar árvores sagradas, cada um cheio de ensinamentos, mijam desenhando o contorno das suas sombras e logo sentem o peso insuportável dos frutos rebentando à volta, no chão ou sobre as cabeças que mal se aguentam entre os ombros na nuvem delirante de pó que ali se levantou. Ei-los: grandiosos intérpretes de sinais, investidos nas suas actividades de decifração, de intercepção de códigos estranhos e ameaçadores, peritos em acções de contra-terrorismo, na exposição dos vícios sobre a terra. Assim, vão construindo esse labirinto barato, apertando os parafusos, montando esse estaleiro, essa choldra, para se encerrarem e terem audiência para os seus teatros, tragédias para surdo-mudos, esquecendo que o que distingue um homem, um que seja forte, é a capacidade de digerir os actos da sua vida, incluindo os pecados, como digere o almoço (Waly Salomão). Já estes só garantem a actividade que serve de alívio à consciência, e se a felicidade não os quer para nada, falta-lhes o talento da infelicidade. Por mais doenças e frustrações de que padeçam, só sabem exprimir queixas de utentes, reclamações de clientes insatisfeitos com o serviço, e vão vendo uma a uma as diversões serem desatarraxadas e levadas do quintal do mundo. Tiram-lhes os pássaros, basta umas coisas pintadas nos muros, uma gravação de sons da natureza cuspida pelo altifalante e interrompida na hora dos exercícios, da messe, do recolher. A cada um seu caderninho, e entretêm-se com o carreiro de formigas, mais além ou aquém da linguagem, textos rolando a lata, copiando à vista as evidências. Cada objecto aparece ali a morder o próprio rabo, e o texto fica ali, num ar de delito mínimo, masturbando-se. Ou isso ou aperfeiçoando aquele ranço auto-piedoso, as flores de cera, comentários sobre o descalabro da existência sempre naquele tom de condescendente de quem dá péssimas notas aos deuses. E se uns ares de superioridade de generais taralhoucos a cabos namorando a esfregona caracteriza a hierarquia ridícula que estabelecem entre si, a podridão é a chave secreta para as suas intimidades, ali onde vivem roçando-se uns nos outros, enfiando os escritos debaixo do nariz uns dos outros, enquanto se revezam gritando: isso é lindo, encantador, uma delícia! Embriagam-se nesse lirismo de grafomaníacos. Mas com tanta pompa e sessões solenes, as palavras surgem mirradas, e dizem apenas o receio de lhes poderem ser assacadas responsabilidades no que vai de mal no reino, no país de puetas, este onde quem quer que levante a mão e dê uma estalada deixa uns vinte, trinta ou quarenta de rosto vermelho. Que terror só de ouvir falar num gesto que se escape de um texto vivo, no bafo dos dentes do dragão, que drama seria se os autores mais citados e admirados fossem por um momento levados à letra. Mesmo os revolucionários, os defensores das populações nativas, mesmo os ditos anarquistas querem tudo condenado a esta infantilidade de admitir que o melhor como o pior só acontece em países distantes, nessas localidades de tal modo estrangeiras que foram confiscadas, só surgem como alusões fantasistas ao passado. E mesmo no que toca às virtudes morais, só suportam as menores, essas pequenas contas a ajustar entre covardes, sem nunca chegar verdadeiramente a mergulhar as raízes na vida, mas apenas dispondo de um leve e incerto mal-estar, antes que alguém se exalte com coisas deste mundo, deste tempo, coisas que estejam ali mesmo. Alegram-se em poder balouçar num grau desta escala degradada, e é no borbulhar da sopa repugnante que têm eternamente ao lume que vão cozinhando as suas miuçalhas, sem alimentarem o desejo de irem além dessa lenta cozedura, incapazes de um gesto natural, de um acto de revolta mais concreta, de qualquer forma de insubmissão, de sabotagem, indo até, se preciso for, à violência. Nem concebem como os anjos têm sobretudo a ver com a guerra, e como se possam ter escrito nesta língua dois versos tão plenos como estes: “Eu todos os meus anjos vão juntos para a guerra/ Se falta algum é como faltar o chão”. Os textos não passam de mais outro dos níveis da composição de um teatro de pulgas. Só contrastes superficiais, elementos pitorescos, efeitos sonoros, truques com espelhos, caixas de fumo. Hoje o que seria, entre estes, ouvir alguém dizer que “o mais simples dos actos surrealistas consiste em vir, de revólver em punho, para a rua e atirar ao acaso, tanto quanto for possível, sobre a multidão”. Agora, que todos exibem os seus crachás de cidadãos vacinadíssimos, escrupulosamente cumpridores de todos os tramites e alinhas seja de que lei, regulamento ou circular do condomínio for, que se voluntariam como patrulhas de bairro, exercem a vigilância a respeito dos modos e maneiras, da etiqueta, do distanciamento, das máscaras, e também, como boas beatas, das disposições de alma umas das outras, temos assim que cada presidiário faz de agente prisional para o que dorme na cela ao lado, e nem lhes passa pela cabeça que há não muito, na última das tradições que se mostrou viva por dentro e, às vezes, também por fora dos textos, pudesse alguém ter clamado isto: “Aquele que, ao menos uma vez, não teve a vontade de acabar desta maneira [aos tiros sobre a multidão] com o sistemazinho de envilecimento e cretinização em vigor tem o seu lugar muito bem reservado nesta multidão, ventre à altura do cano.” E ainda acrescentava num aparte ao pé da página: “Sei que estas duas últimas frases vão encher de contentamento um certo número de comadres que tentam há já muito tempo contrapor-me a mim mesmo. Assim, direi bem quando digo ‘o mais simples dos actos surrealistas’? E então? E enquanto uns, demasiadamente interessados aproveitam para me perguntar ‘de que é que eu estou à espera’, os outros berram que é anarquia e querem fazer acreditar que me apanharam em flagrante delito de indisciplina revolucionária. Nada me é mais fácil do que cortar a essas pessoas o seu miserável efeito. Sim, estou ansioso por saber se um ser é dotado de violência, antes de perguntar a mim mesmo se, nesse ser, a violência se concilia ou não se concilia. Creio na virtude absoluta de tudo o que se exerce, espontaneamente ou não, no sentido da inaceitação, e não serão as razões de eficácia geral em que se inspira a longa paciência pré-revolucionária, razões diante das quais me inclino, que me irão tornar surdo ao grito que em cada minuto a assustadora desproporção entre o que é ganho e o que é perdido, entre o que é concedido e o que é sofrido, nos pode arrancar. Este acto que eu digo ser o mais simples, é evidente que não é minha intenção recomendá-lo entre todos os outros só porque é simples, e arranjar questões a este propósito redunda em perguntar burguesmente a todos os não-conformistas por que é que não vão viver para a U.R.S.S. Vão dizer isso a outro! A pressa que alguns têm em ver-me desaparecer e o gosto natural que eu tenho pela agitação bastariam para me dissuadir de ‘desamparar a loja’ tão inutilmente.”
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