Neste ambiente cada um tem o seu passador, e drogas de eleição, subterfúgios para se elevar minimamente acima das suas circunstâncias, um desejo de erguer o ego quando a libido deu lugar a reles formas de prevaricação, e a escrita se tornou uma indústria publicitária para consumo solitário, uma forma de jornalismo para consumo imediato; os versos, sem grande nível de realização formal, repetem apenas o necessário para segurar o delírio que contaminou cada batida, cada respiração, a conspiração de si para si mesmo, as noções de um dependente químico, que dotou as palavras desse reforço sintético da realidade, sinestesias básicas, correspondências entre o eu e esses emblemas do sucesso. Ninguém já quer estar condenado a ser apenas um homem. Todos se sentem inspirados a actos e realizações de grandeza superlativa, e, por isso, a mais mísera criação surge infundida de todo um aparato mistificador, pois não há quem consiga partir deste vazio, da velha realidade tradicional e sonolenta, e arrancar ao familiar e quotidiano uma nova ordem, uma violência que irrompa por dentro, impregnada de um espírito com outro alcance, para que o lírico possa reivindicar um vigor que se mantenha sempre nesse desequilíbrio de uma constante refundação e autodestruição. Não são já os grandes temas o que pode fazer algo pela nossa consciência, mas a atenção a essas diferenças mínimas, permitindo que regressemos aos momentos auspiciosos em que toda a linguagem convencional se desarticulava. Não mais os códigos cerrados e restritivos, para um grupo de párias obcecados, incapazes de um vício sério e devastador, mas que antes persistem nessa adoração sem qualquer propósito, sem uma tensão que leve a vida a algum fim premeditado, por isso, porque os seus impulsos são governados por uma pulsão colectiva amorfa, temos estes cérebros interligados, redes envolvendo centros nervosos que se aplicam de forma degradada, e, naturalmente, as ideias são meros reflexos, tudo adquire uma feição parcial, incompleta, improcedente, e também daqui resulta, como nos diz Gombrowicz, o fedor da insinceridade entre eles, uns com os outros e mesmo em relação a si próprios, na incapacidade de se examinarem e questionarem. “E não apenas entre funcionários menores”, vinca o escritor polaco. “As suas melhores mentes estão infectadas dessa sinceridade repulsiva e incompleta: sinceras em relação ao mundo alheio, mas inibidas, prontas para se castrarem a si mesmas de toda a integridade quando o assunto é o edifício da sua própria quimera. Ofélia, vai para o convento!” Ora, o que vemos é que o inferno é, nos nossos dias, o triunfo da mais tacanha compreensão dos fenómenos, da mais redundante representação das coisas. Se nos falta uma pulsão ardente, uma perseguição aos elementos casuais, às impressões breves, na poesia uma capacidade de deixar-se ser guiado pelos sons, pelo ritmo mais do que qualquer teoria, e que o ouvido possa desenvolver o seu próprio estômago, capaz de deglutir o canto dos pássaros, e, sobretudo, de desequilibrar o tempo, sem estar circunscrito à memória, ou então elevado a lembranças e sentimentos populares, e também devotar-se a uma arte que possa provocar um desfalque do eterno, fazer cair os frutos ríspidos do inabalável, alimentar outros seres, outras noções. Porque assim não se vai a lado algum. Estamos reféns de uma bondade que supera todos os nossos ímpetos e instintos, uma moral impessoal e abstracta que nos força a uma cooperação no sentido de facilitar a harmonia gestionária dos fluxos do capital. Daí que Gombrowicz encare a fauna cultural e o literato em particular como almas que se resumem a uma massa sensaborona, produzindo os seus livros e artigos que tresandam a suavidade desleixada, essa que foi em tempos característica da província profunda. Porque a grande urbe não passa de uma zona de retracção, onde opera a maquinaria que nos destitui dos elementos mais aguçados, dos contrastes decisivos, produzindo simulacros, livrando-nos dos aspectos que nos moldam o carácter, nos entregam a essa imperfeição da qual nasce o terror de se ser um e só frente a todos os outros. “A lei é assim: quando a vida colectiva se torna tudo, o indivíduo torna-se flácido." Daí que possamos observá-los rendidos a essa virtualização que troca os caracteres da experiência íntima por um gregarismo que tudo vulgariza, que obriga a que as mensagens se dirijam sempre ao mais imbecil, ao menos capaz de deter um sistema complexo, onde a ambiguidade e as nuances permitem manter diversos corpos em órbitas distantes entre si, embora sensíveis aos efeitos dessa vizinhança inquietante. Em vez disso, de uma cosmogonia, temos esta renúncia à inteligência e a adesão a uma moral que apenas serve de orientação aos mais ingénuos, em vez de uma moral truculenta, que tenha pesquisado essas zonas de angústia, feito da literatura uma exploração dos sentidos mais profundos, experimentando até com a forma aguda do Mal, para poder discernir a partir de que momento o bem é um instrumento de equilíbrio e força, e não apenas esse “aconchego deles para com o destino, nesta ‘decência’, nesta ‘bondade’, nesta ‘virtude’ muito específica que é a deles” (Gombrowicz). Pois o que lhes interessa mesmo é justificarem o seu profundo desinteresse, a falta de um desejo de confronto, ao ponto de exibirem de forma quase histérica o seu desconhecimento, como se estivessem antes investidos noutras empreitadas mais valorosas, em jogos menos soezes. Defendem assim um pacifismo e uma suposta convivência em que todas as tensões se dissolvem, em que não há lugar a grandes atritos, dispensando também o esforço de se refundar um novo sistema semântico, ensinar o subconsciente a partir noutras direcções com base no mapa instável que a linguagem nos permite abrir a cada momento, cheio de recortes imprevistos, formas insustentáveis numa observação directa, mas que, após serem sugeridas, vibram no nosso interior. Em lugar disso, contentam-se com esta desgastante “cordialidade, misturada com mentiras, mas também desfocada e quase inocente na sua estupidez”. E se ficam a um passo de te culparem por teres tido a ousadia de trazer um inaudito regime de conflito aberto, despoletando todo esse mal-estar que residia numa camada menos superficial, sujeita aos tráficos da hipocrisia, esquecem como, neste mundo, as pessoas se criam mutuamente – “o homem depende do homem, sendo o homem visto através de um constante laço criativo com o outro, permeando-o uma e outra vez, ditando o mais ‘pessoal’ dos sentimentos” (Gombrowicz uma vez mais). Mas para que assim seja, é essencial escaparmos a esta forma estéril de convivência, em que nada de mais grave ou perturbador pode ser expresso pois, de outro modo, estas presenças cada vez mais rendidas à fantasmagoria sentir-se-iam auscultadas nas suas partes mais vulneráreis e, portanto, postas em causa. Daí que valha a pena renovar o desejo de um espontâneo movimento de polémica, de antagonismos inconciliáveis em riste, mesmo que estes tenham de ser arrancados à força, contra os desejos de grupos que cada vez mais se entregam à sornice mental, ao abandono a essas leis de promoção de um colectivo que derrota aquela diferença que acaba por funcionar como o desiderato de um verdadeiro embate democrático, e que obriga a uma diversidade tão generosa quanto honesta, capaz de sustentar as suas posições sem abrir mão de uma boa dose de conflito. “Isto acontece porque é entre as pessoas que é produzido o elemento da Forma que determina cada pessoa individualmente. Eu sou como uma voz numa orquestra que tem de se afinar para encontrar o seu tom e encontrar o seu lugar na melodia (...) E é por isso que nem o meu pensamento nem o meu sentimento são verdadeiramente livres ou pessoais. Penso e sinto ‘para’ as pessoas, de modo a rimar com elas. Experiencio uma deformação em consequência da mais elevada das necessidades: sintonizar-me com os outros na Forma.” E destas palavras de Gombrowicz, escritas no seu Diário em 1956, transitamos para Luiz Pacheco que, três anos depois, fazia circular uma folha-volante mimeografada com o título “Convivência e Polémica” em que constatava que, "se tudo nos prova, agora e aqui, que o autêntico convívio resulta de nos pronunciarmos como somos, rigorosamente pessoais, cruelmente duros para os hesitantes e para os oportunistas (que são a maioria), sem respeitos humanos nem silêncios falaciosos; se a convivência só é honrada por uma fecunda polémica, pela lealdade dos termos em que esta for posta, na mútua consideração que, mau grado adversários, se dedicam aqueles que sabem lutar e viver por uma (sua) verdade – como poderemos acreditar nessa outra convivência possível em que nada mais descobrimos senão um pretexto, uma escusa espertalhona para a nossa inutilidade e para a nossa submissão conformista?” E logo concluía: “A POLÉMICA É A RAZÃO DA NOSSA PERMANÊNCIA.” Ora, infelizmente, e nos termos actuais, em que os adversários aproveitam qualquer desculpa para se furtarem a uma análise séria do que ocorreu, do que foi escrito ou se disse, em que se sujeita tudo a uma moral ordinária e o sentido da literatura é atraiçoado a favor desse “feixe de estruturas tão inqualificáveis quanto inadequadas ao acto em mim sozinho como a vida puro”, é natural que a geração à qual pertencemos seja encarada meramente como o povo de uma época destinada à inconsequência, e cujas acções e pronunciamentos apenas confirmam o seu sentido de impotência, essa espécie de longo intervalo entre sentir-se destituída do seu tempo e o pesadelo de se sentir incapaz de despertar para uma realidade que volte a reinstituir gestos capazes de reclamarem outras consequências que não este abandono e abastardamento. Esta geração está longe de ser tumultuosa, ou de se sentir particularmente empenhada em retirar lições da vida literária, dessa energia captada através das mais radicais fontes de transição, que não se deixam asfixiar nos limites dos processos históricos. Mas para isso os nossos desejos por demasiado tempo renegados terão de se libertar dessas fantasias grotescas de se alcançar a legitimação em literatura através dos esquemas mais mundanos da vidinha literária como forma de promoção do ego. E numa altura em que todos nos exigem que abandonemos este apetite de destruição de uma ordem que faz de todos nós serventes ou palhaços num circo ambulante, indo pelas províncias a representar a falta de vigor e a paralisia dos centros da vida artística e cultural, quando esperam que abdiquemos do nosso dom odioso, é isso o que mais nos instiga, a consciência de que a provocação é um direito, numa altura em que a literatura mais predatória resvalou para a esquisitice ou para o barroco, quando não apenas para os relatos mais pindéricos e triviais, para um fluxo de lugares-comuns, frases feitas, conceitos de uma banalidade confrangedora, apresentados numa prosa arredondada, mole e descurada. Quanto aos versos, esses simplesmente desapareceram de circulação, e tudo o que vemos são frases retalhadas, por vezes com algum aprumo, tantas vezes conscienciosas, bondosas e ternas, mas sem aquela transgressão ilimitada ou uma soberania que não se prostre diante do sentido que caiu já no goto, esse pedaço de carne que todos mastigam de forma ruidosa, e que faz da imaginação mais outra pauta para a imundície com que nos entretemos, nesses variados sabores para expressar uma mesma mediocridade. Assim, aproveitando-nos de um diagnóstico feito por Gombrowicz sobre uma certa vanguarda poética do seu tempo, ele diz-nos que se qualquer um desses poetas fossem removidos “da nossa vida espiritual (atenção!, uso o termo ‘vida espiritual’ a sério), nada aconteceria... tal não teria alterado coisíssima nenhuma... Ver-nos-íamos empobrecidos devido a uma certa quantidade de metáforas e rimas, bem como a uma certa quantidade de beleza e também a uma certa quantidade de novidades poéticas, importadas ou nacionais – e seria tudo.” Ora, do ambiente que reconhecemos à nossa volta, é difícil supor que a perda deste ou daquele poeta pudesse significar um empobrecimento no que toca a algumas metáforas ou sequer a rimas, sendo estes elementos depreciados e cada vez mais desluzidos pela geração presentemente a concurso, e o certo é que a literatura a que desejam devolver-nos tem-se transformado, na verdade, num regime bastante indecoroso em que tudo é permitido uma vez que a confraria valida por igual seja o que for e a relação das cumplicidades deturpou todo o sentido de lealdade, todo o desejo de fundar uma convivência crítica, uma comunicação intensa e aguerrida, empenhada e honesta. A mais das vezes, temos querelas sem substância entre adversários que não se respeitam sequer ao ponto de conseguirem justificar porque se embrenharam numa troca de acusações, expressando apenas desdém, revelando essa tendência para uma exibição cega, esbanjando epítetos grosseiros só para causar estardalhaço, mas sem ferir o Outro. Assim se sabe quem conhece e respeita os seus alvos. Não basta infamar e insultar, é preciso ferir de tal modo que se converta a vítima a essa procissão de lesados que a qualquer oportunidade reinvestem a sua paixão, gerando um formigueiro de calúnias que soa a gritaria sem aquele fundo de um vento insaciável. No fundo, são vozes sem carácter, expressões de um ultraje indistinguível do berreiro de uma qualquer populaça. Mas se persiste este ambiente de discórdia e de bulha no registo mais infantil, por outro lado, essa diversidade e relação democrática que uns e outros tanto dizem promover e defender, resulta quase sempre como uma espécie de prece dirigida às tais mentalidades bondosas sempre disponíveis para encontrar algum valor mesmo na realidade mais enfraquecida e, se preciso for, buscando talentos através de um microscópio, ao ponto de nas coisas mais gratuitas e simplórias se ir encontrar a expressão de um último reduto da humanidade que em nós definha. O certo é que, como notava Gombrowicz a propósito dos poetas do seu tempo, nenhum deles “forneceu algo electrizante, nada verdadeiramente pessoal, nenhuma solução, nenhuma transformação da realidade para qualquer forma, definida e expressiva, tal como um rosto humano pode ser expressivo”. E, salvo as raríssimas excepções que temos vindo a destacar e que merecem ser afastadas desse regime de canto coral que louva tudo segundo o mesmo registo merencório e desonesto, nivelando e dando a sensação de que tudo é solúvel face ao mesmo grau de acidez, salvo essas raras vozes que contrariam esta dinâmica pavorosa, podemos dizer desses poetas que tanto se exibem que o fazem precisamente por estarem conscientes de que escrevem com tintas que tão cedo quanto secam logo começam a perder propriedades e a desaparecer, pois nunca foram capazes de ferir algo de profundo nessa reserva mais íntima da nossa memória. “Faltava-lhes um rosto. Eles não tinham uma relação com a realidade.” Assim é nos nossos dias, e é natural que este desespero de toda a uma geração que se sente a viver para a desaparição, vítima do próprio ruído em que tão laboriosamente participa, denuncie cheia de indignação e fúria todas as tentativas de se exercer um esforço de exame crítico que possa designar as poucas obras que se mostram minimamente exuberantes e capazes de persistir. Daí toda esta hostilidade que não tem pejo em acusar um crítico de agir como um terrorista, pois é precisamente isso o que sentem estar em causa: um exame virulento do que está por trás de toda essa débil mascarada, que os expõe e, por isso, defenestra todas essas ambições desprezíveis e a forma como tantos desses poetas se fazem sustentar apenas de esquemas de compadrio, de uma espécie de santidade que se estende a todos ou que, de outro modo e numa mesquinha atitude de vingança, não admite que ninguém nela seja acolhido. Esta é a primeira geração em que os poetas, em vez de um pacto faustiano com o diabo, procuram antes negociar colectivamente os termos de um contrato ao abrigo do qual todos deverão ser afirmados segundo um prestígio tacanho, na medida em que todos expressam convicções parecidas, as quais não diferem no essencial do catecismo político e social mais comummente difundidos nos nossos dias. E é por isto que conseguem estar todos de acordo, e, dentro de um regime de hipocrisia que vigora em todos os aspectos nesta convivência garantindo a tal cortesia mútua, expressar as mesmas ideias variando apenas certas modulações a nível da estética de cada um, a qual redunda a mais das vezes numa mera afectação do discurso. Assim, também dos poetas dos nossos dias se poderia dizer que foram antes de mais poetas “por exclusão de partes”, poetas apenas diante de coisas já poéticas; não foram poetas nesse sentido firme dos que transformam a não-poesia em poesia, como vinca Gombrowicz. E é com isto que temos de nos satisfazer. Assim sendo, ao discurso crítico admite-se apenas que levante reservas de teor mais técnico, sem pôr em causa os elementos de fundo de uma poesia que parece escrita por comissão, com as sensibilidades a serem sujeitas a uma espécie de sufrágio, o que necessariamente nos conduziu nas duas primeiras décadas deste século a uma erupção colectiva de vozes bastante indiferenciadas, que se alinham sem qualquer estratégia, menos de acordo com afinidades electivas do que afectivas, o que é, de resto, algo que simplifica bastante a exportação no regime desses pacotes antológicos, que vão funcionando como uma montra para o que de mais estéril entre nós se produz. No fundo, a poesia portuguesa actual é uma poesia de grupo, no qual esses casos à parte estão sempre sujeitos a uma tentativa de agenciamento e diluição na restante massa sensaborona. Os restantes, são poetas apenas porque assim o decidiram, cultivando um fervor e embriaguez que deslizam amiúde para formas requintadas de patetismo, nuns luxos expressivos que não podiam estar mais alinhados com a terrível pobreza de espírito do conteúdo aspiracional que vem sendo promovido pela sociedade de consumo. Isto leva a que, na sua maioria, os poetas funcionem hoje como mais uma ordem de publicitários propagando o discurso ilusório e a pornográfica imbecilidade de noções românticas muito afins dessa ordem criadora de mortos-vivos. E o orgulhoso vanguardismo que hoje todos professam resulta, afinal, de todas as palavras estarem à partida condenadas à insuficiência, o que gera uma estética ansiosa, com as imagens a sucederem-se numa estesia descontrolada, damos por esses arroubos delirantes, sem nenhuma confiança na sua capacidade de deter uma observação do mundo quanto mais de acrescentar algo à realidade. Daí que a imundície triunfe, não necessariamente por as nossas imagens serem as mais grotescas, sórdidas ou obscenas, mas por lhes faltar um núcleo capaz de impor uma nova força racional ou sensível, um novo ímpeto que reordene a relação que mantemos com as coisas ao nosso redor. Aproveitando um provérbio polaco sugerido por Gombrowicz, que fala de uma galinha cega que apanhou um grão, também a nossa é, hoje, claramente, uma literatura de galinhas cegas. Neste ambiente, é mais do que natural que aqueles que, inspirados pelo cinismo, estão dispostos a promover toda esta chusma de gente como protagonistas num regime de folclore artificial, consigam assumir algum favor e uma generalizada aceitação, isto num ambiente cultural onde ninguém admite juízes capazes ainda de impor valores que contrariem esta imobilidade sonolenta. A poesia está assim sujeita a esta chantagem da maioria contra a minoria, sendo certo que as pouquíssimas vozes que acabam por persistir têm necessariamente de o fazer desembaraçando-se de todo esse entorno de excrescências ornamentais. Neste ambiente, é natural que a tarefa do editor e do crítico, se levada a sério, provoquem uma ira descontrolada dos poetas que se sentem preteridos ou, até, de algum modo, denunciados na condição decorativa e desnecessária da arte a que dedicam tanto dos seus tempos livres, num esforço de suplementarem as suas vidas tão apagadas de algo que tenha um outro peso, e que justifique as suas ordinárias existências. Estes burocratas da arte depressa se deixam arregimentar para esses projectos de diluição que, sob a capa de propagação da diversidade, se lançam numa perseguição que condena qualquer esforço crítico como uma forma de “fascismo encapotado”. São os autores dos livros mais insípidos aqueles que justamente sentem que uma apreciação literária equivale a um linchamento das almas, pois eles vieram para a poesia tentando provar que existiam, em vez de se entregarem ao esforço de inventarem as suas próprias personalidades dentro da poesia e não meramente à sua volta. E aqui vale bem a pena lembrar afirmações como esta de Eliot: “A evolução de um artista é um auto-sacrifício constante, uma extinção constante da personalidade.” Ou ainda esta de Joyce: “A personalidade do artista (...) refina-se por fim até deixar de existir, torna-se impessoal por assim dizer.” Para estes poetas, pelo contrário, a poesia funciona como caução de que de facto eles existem, e daí a sua infatigável corrida para aceder a todas essas instâncias e eventos que promovam a sua visibilidade. Assim, encontramos esta aristocracia das artes sempre desaustinada, como que à beira da ruína se não tiver na calha alguma manobra para a multiplicação quotidiana da sua presença, e, no fundo, acabamos por dar-nos conta de que hoje os artistas que pretendem ser essa última flor da humanidade, em vez de uma terrível fome de mundo, de viverem sujeitos a uma santidade pesada e íntima, depressa murcham se não conseguirem seguir o andamento imparável da produção cultural. Isto é mais um dos sintomas dessa pressão colossal a que hoje estamos sujeitos por todos os lados para renunciar à nossa própria existência, como nos diz Gombrowicz, adiantando que, tal como qualquer outro postulado que não pode ser realizado, isto conduz-nos tão só à distorção e falsificação da vida. É neste ponto que estamos, num momento em que os poetas e aqueles que os promovem actuam como falsificadores da realidade, e como promotores dessas instâncias em que a cultura surge reduzida a meros produtos de consumo, com a literatura a ser tratada não como algo de essencial mas como um mero suplemento de existência e como decoração. E neste ambiente em que tudo se vê secundarizado face aos ciclos do consumo, o artista e o poeta terão ainda uma palavra enquanto forem capazes de rir de tudo isto, de usar a sua insolência e satirizar este regime abandalhado e patusco em que todos querem garantir a sua entrada à força e em assembleia nalgum panteão postiço. Mas Gombrowicz lembra que o nosso riso de hoje já não pode ser espontâneo ou automático – “tem de ser um riso premeditado, um humor aplicado com frieza e seriedade, tem de ser a aplicação mais séria do riso à nossa tragédia”. E acrescenta ainda que “este riso, ditado por terríveis necessidades, deve abarcar não só o mundo dos inimigos, mas acima de tudo nós mesmos e aquilo que temos de mais caro”.
Sem comentários:
Enviar um comentário