Onde foram as noites?
Onde foram as noites?... É o que me pergunto desde há uns anos. O que lhes fizeram? Se as desmontaram, se as deixaram em tantas partes, seria bom saber se ainda se pode recuperar alguma coisa, zonas profundas que terão chegado, em tempos, a ser exploradas por uns quantos. E se alguns, hoje, ainda se vangloriam de ter ido até ao fim de uma ou outra, não lhes vemos quaisquer sinais dessa aventura, sequer transtornos, nada a não ser truques baratos, conversa fiada, apontamentos nebulosos, mapas onde é patente o esforço imenso de quem os desenhou para nos cansar a vista e nos fazer mudar de ideias. Mas e se não mudamos de ideias? Rapidamente nos damos conta de que os poemas que nos têm servido resultam quase todos da pilhagem de ecos, incapazes de sonhar com qualquer rastro futuro, ficam-se por advertências, pela insuportável fanfarronice dos débeis, e assim começa a não haver saída. A realidade tende a afrouxar, a desaparecer. A morte, ainda que seja um receio banalíssimo, impera como um hábito colectivo. Perdem-se tantos na sua antecipação demente. Leiam-se os poemas que estes tipos nos põem insistentemente debaixo do nariz, esses que fazem de mim um demónio barato, que se apresentam com o seu andar inchado, tão enfáticos e ao mesmo tempo ofegantes, carregando essa tradição das coisas insípidas que qualquer um sustenta, aplicando-se em adular as noções do homem-médio, essa forma de compreensão lenta que nos força à clareza, a ficarmo-nos sempre pelo nível das evidências mais cretinas, ao ponto de qualquer parvoíce, as observações mais inócuas abundarem nos textos que hoje se consome. “Vivemos submetidos a uma espécie de mímica mental que nos proíbe de aprofundar seja o que for e nos faz encarar com hostilidade o que nos foi mais querido”, assinalava Breton. O dia afastou as nossas conjecturas mais improváveis ou escandalosas, e a atitude de confronto destemido com o mundo passou a ser vista como sinal de uma razão monstruosa. À força de tão insistentemente serem assediados e celebrados num momento, para no seguinte se sentirem ofendidos e humilhados, o metabolismo das formas publicitárias impôs-se de tal modo que convenceu toda esta gente de que só resta à arte aderir aos valores inclusivos, a apregoar um regime de acesso universal do lado de quem manja como do lado de quem cozinha, uma indistinção que tome tudo por igual, como se a diversidade fosse alcançada sem primeiro um ferocíssimo conflito para fazer valer essas diferenças no tempero que se tornam perigosas e são, por isso mesmo, tão difíceis de engolir sem forrar antes o estômago. No fundo, o que a maioria destes “artistas” vem propor é a desvitalização de tudo, uma forma de rebaldaria em que ninguém se deve sentir capaz de reunir as forças para vir traçar uma linha divisória entre obras com um potencial purificador e revigorante face a tantas que apenas refocilam em inanidades e lugares-comuns. Na verdade, esta canalha até suspeita do quanto os seus escritos são redundantes, e isso é bastante evidente no desconforto que sentem ao verem-se reunidos, sempre que partilham um palco ou uma mesa, ao sentirem que nada de muito especial se exige deles, e que essa confraternização até convida a deixar de lado argumentos mais aguçados, sendo dissuadidos de mostrar as armas, ou empenharem-se até ao limite das suas capacidades num embate honesto. Para isso teriam de aceitar que a crítica pudesse ser feita da forma mais cruel e devastadora, com “o objectivo de esmagar o acordo e de tirar as pessoas para fora dos seus lugares” (Gombrowicz), obrigando-as a revelarem-se. Porque depois, quando se fala no abstracto, sem nomear nomes (é claro), ninguém discorda que o campo das artes e o meio literário estão podres e para lá de qualquer possibilidade de reforma a menos que algo de realmente drástico ocorra. Mas é isso, no fundo, o que lhes causa maior nervosismo: a hipótese de que possa surgir uma geração de verdadeiros antagonistas dispostos a deitar ao lixo estas colheitas larvares. No fim de contas, educados como sempre foram para essas formas de cortesia hipócrita, nada os assusta mais do que se verem expostos a nu, porque investiram tudo nas aparências. A arte que fazem não tem outra substância. E, no entanto, usam-se uns aos outros como desculpa. Há sempre um pior, um mais desavergonhado, um palonço de tal ordem que, por comparação, absolve os outros, esse sim é uma verdadeira fraude, e, face a ele, tantos dos que aceitam aparecer como artistas catalogados, tomar o seu lugar nessa maçonaria de medíocres, sentem-se justificados. Há sempre um António Carlos Cortez, uma Inês Pedrosa, um José Riço Direitinho... é fácil fazer este exercício, e prosseguir com a lista. Mesmo entre os mais novos, não faltam pressurosos candidatos a qualquer vaga, qualquer apoio que lhes permita parasitarem o Estado e as instituições da nossa paróquia cultural, não faltam também os que, com um poucochinho mais de talento, se aprestam a engrossar o esquema, a vir fazer “arte como quem vai para o escritório e preenche uma função sacerdotal ou mercenária” (Ribemont-Dessaignes). Mesmo esse artista que passou a vida a vestir o guarda-roupa do susto, a experimentar todas as caretas e carantonhas dos grandes delirantes, a fazer o tráfico entre o que ficou nos perdidos-e-achados dos que se deram muito mal, desses malditos que se atiraram às fuças de tudo o que para aí vai de garruços de arcebispos e de mestres-escola, mesmo um António Cabrita, não hesita em vir dizer a um editor que se não envia os livros dos autores que publica para serem “avaliados” pelos mentecaptos do PEN (Vitor Silva Tavares dixit) terá de os recompensar financeiramente. E assim se revela mais outro destes desgraçados que há muito entrou no domínio dos que têm comércio com o espírito e que, como nos lembra Ribemont-Dessaignes, tão-logo nos fazem o favor de deixar claro “que a mercadoria em que menos abundam, e que pretendem que seja a sua especialidade, é justamente o espírito”. Basta ler a poesia de António Cabrita para se perceber como esta se atasca em trocadilhos, se bamboleia numa prosa irrefreável e aborrecida que lá se vai cerzindo sem nenhum critério, apoiando-se a esmo na voz de outros sem tocar no fundo do espaço vivo. É uma poesia confrangedoramente banal, em que todas as referências ao mundo que se salva fora dos versinhos ali o reduzem à sua caricatura, e sempre num tom de zombaria que, na verdade, se revela mole, num excesso de efeitos e artifícios para esconder a forma como se enrola em ninharias enquanto transita de uma imagem mais saborosa que leu em Juarroz para outra que foi buscar ao Nicanor Parra, entre tantos mais. Vai estendendo essas bandeiras negras tentando que o vejamos a navegar para as águas mais amplas como um barba-negra, quando não passa de uma barba-rala a brincar com esguichos no bidé. E também é assim que se apresenta nas querelas, sempre tomando posições que amesquinham não o adversário mas a pobríssima distorção que dele ensaia, vindo repescar episódios do passado sem nem se dar conta de que deixou certas polémicas a meio. A do Herberto é um exemplo: veio a terreiro, disse umas sandices e logo se foi a gritar vitória. Nem leu o livro em causa (afinal, o Herberto já lhe merece tanto respeito, para quê dar-se ao trabalho de o ler?), nem a resposta que depois levou. Mas lá se foi ele, todo contente, segurando o seu pratinho de prata fosco onde se remira e recebe a luz emprestada das suas pálidas luas que o convencem de que ninguém lhe dá lições. É daqueles que já vão acertando os pormenores da sua passagem imperial à posteridade (com direito a arrastar concubinas e escravos), e que não vê que se tornou num director de circo, mas desses que em vez de acrobatas ou sequer palhaços com um número ensaiado, vai apitando ao vento das feiras mais cabisbaixas e exibindo os amigos como aberrações entre conventos e bordeis, livrarias destas sem programa nem qualquer espécie de zelo, que servem sempre a mesma açorda para contentamento das moscas. Depois vem aquele desfile dos cretinotes do costume, desde a associação mutual dos eternos lesados do DVP, ao lote de frangos de aviário a quem foi recusada edição na Língua Morta. (Acreditem-me: não se trata de um ou dois casos e se não digo os nomes é porque, dentro de certos limites, me parece importante preservar a confidencialidade no vínculo entre editor e proponente a autor.) Sem vergonha nenhuma de se acharem poetas ao mesmo tempo que participam nestas miseráveis petições e abaixo-assinados, com uma linguagem vácua, entorpecente, acusações estéreis, sem nem se esforçarem por confirmar minimamente os factos... Ninguém pergunta nada, já todos sabem o que se passou, é tudo muito simples, e estão ali apenas a constatar o óbvio, mas, no entanto, andam ali numa gritaria e ainda se engalfinham uns com os outros. No fim, conseguem tomar-se a sério, o que, para qualquer observador um pouco menos ingénuo, não deixa de constituir uma curiosa intoxicação. Se não fossem tão palermas, tão incapazes de resistir a essas patranhas descontroladas, ao soprar ávido das cornetas uns dos outros, não nos forçaria a rir mas a chorar o facto de tantos dos nossos poetas se exibirem publicamente como fantoches melodramáticos. E são estes mesmos os que, em tantos outros momentos, nos vêm com análises à guerra na outra ponta do continente, estes que com um ar tão grave e ridículo acenam com os seus valores de esquerda ou sociais-democratas, e produzem sentenças tão patéticas nas redes sociais como nos versinhos que publicam, propondo debruçar-se sobre os precipícios da existência enquanto nos aborrecem com as maiores banalidades sobre a bondade, a decência, a humanidade... Nem uma sombra mais escura do que seja o mundo lhes atravessa a consciência, mas isso não os impede de produzir decretos altaneiros, e a maioria destes pategos nem estranharia (acharia que, por fim, a justiça poética triunfou) se amanhã o Marcelo lhes ligasse convidando-os para proferirem o discurso do próximo 10 de Junho. Estes poetas conseguem estar ali, numa caixa de comentários durante todo um fim-de-semana, expressando-se da forma mais cretina, numa tal indistinção de vozes, sem que se produza entre tantos um só argumento credível, uma descrição minimamente realista dos factos, ou qualquer leitura mais fantasiosa e inspiradora. Agem, assim, como os percevejos e as ascárides dos intestinos dos cães, compensando a sua cobardia com pontos de apoio que seriam válidos apenas se aquilo fosse uma reunião de condóminos ou de pais de uma C+S na província e a realidade em debate algo tão tacanho como para as suas mentes se sentirem capazes de dilucidar o que esteve em causa sem terem ouvido e confrontado fosse quem fosse. Que consolo deve ser reforçarem assim as suas pretensões enquanto “pessoas de bem”. Os nossos puetas são perfeitos exemplares do “homem-massa”. [Fica já aqui a nota de rodapé: 
A massa, segundo Canetti, é um fenómeno de concentração de um conjunto de indivíduos que tende para um crescimento e para um objectivo. E o princípio da sua formação é o “medo de contacto”: todas as distâncias e protecções que os homens criaram por se sentirem ameaçados pelos outros e pelo desconhecido são ditadas pelo medo de serem tocados. O ponto de partida de Massa e Poder é esse medo originário (Canetti já tinha escrito na sua autobiografia: “Os nossos medos nunca se perdem, ainda que os seus esconderijos sejam misteriosos”) que se inverte em formações de massa. Através das massas, os corpos aproximam-se como se formassem um único corpo.] Como podem estes artistas, tão empenhados em revelarem toda a sua educação moral e cívica, ter alguma coisa para nos revelar sobre o mundo quando exibem em todos os seus actos e manifestações este “medo de contacto”, este pavor de qualquer embate, e como poderiam eles corresponder de algum modo a esse imperativo de coragem, a esse que é o remédio que nos resta quando se concluiu que não há já remédio, que é sair à rua, ir lá, pôr a cara ao alcance desses que dizem estar cheios de vontade de a cobrir de escarros, de te arrebentar um olho? Se eles prometem que te põem uma trela e te prendem a uma árvore, como pode um artista verdadeiro faltar a tal chamada? Depois dizem que foi lá e bateu. Mas bateu? E se ao menos o tivesse feito, alguém se perguntou o que houve que o levasse a pensar não haver outro remédio? Temos de ser minimamente consequentes e rigorosos se queremos armar em juizes no "você decide", de outro modo seria bom que nos deixássemos de conices e de tretas moralistas. Por agora, as reacções desta corja apenas revelam como muitos foram tocados, como este “unanimismo que abraçou o tudismo e pesca à linha artística” sente que tem o flanco exposto, e tem apanhado forte e feio, mesmo quando usam as tácticas mais mesquinhas, as intrusões na vida privada, e depois convocam o adversário para enfrentamentos reagindo com a maior das indignações quando este aceita o convite e aparece mesmo. Buh! “Mas eu conheço-te de algum lado?”, respondia o cobardola (Emanuel Cameira) que ostensivamente tinha marcado o encontro depois de desferir golpes baixíssimos e sob anonimato em terceiros que não eram chamados para o caso na revista desse grande anacoreta e mestre da subversão que é Júlio Henriques. Pois bem, o que nestas brincadeiras de sicofantas se perdeu de vista é que com a actual campanha de recruta de pobres diabos aplicados aos poemas e à denuncia dos mecanismos de produção predadora da nossa sociedade perdeu-se a capacidade de separar a noite destes dias em que se entretêm a diabolizar aqueles que entre nós extraem consequências concretas e apontam algumas fragilidades neste imenso concerto fracassado quando toca à literatura ou à poesia e ao regime de consumpção a que aderiram aqueles que dizem estar-lhes dedicados. Toda a abundância em que nos afogamos é sinal, na verdade, de um vazio terrível. Todo o alarde e os apitos com que se manifestam estes que dizem estar empenhados numa abordagem radical, nomeadamente por meio de uma suposta crítica civilizacional, colocando-se à margem dessas “maiorias consentidoras, domesticadas ou silenciosas”, apenas revela a sua disfunção e ineficácia, o estado de exasperação em que se encontram por não terem o talento de se fazer ouvir/ler ou sequer o de serem levados a sério. Quando o grande problema da poesia portuguesa é um editor e crítico literário, devemos estar mesmo nas últimas. Mesmo que o tal crítico seja um “fascista encapotado”. Se um fascistazeco é capaz de envenenar de tal modo o ambiente, imagine-se agora o que seria tentar fazer frente a “uma megamáquina totalitária mundializada” (a feliz expressão é do Julinho, director do giroflé-flé-flá da subversão e tocador de flauta... mas atenção que é daquelas de luz, e apostaria que tem raio ultravioleta para dar cabo de hordas de vampiros). Enquanto isso, alguns de nós estamos mais empenhados em conseguir lutar por um pouco de noite, algo mais negro, mais emancipador desses instintos que se permitem farejar no escuro, e desde logo da imaginação, que é o último dos nossos sentidos, aquele que mais nos liga e isto no interior das nossas diferenças, este é o único sentido capaz de sondar as hipóteses mais improváveis, as verdadeiras saídas. Se se pode dizer hoje que está tudo pronto, uma vez que “as piores condições materiais são excelentes” (Breton), então está na hora de dividir os dias, arranjar um fosso, uma zona não vigiada e onde seja possível escaparmos às leis dessa utilidade arbitrária que nos é imposta de cada vez que outro dia nasce. Basta de ter certezas, de nos entregarmos aos exercícios da maior facilidade, a esses rituais destes galos que competem pelo título daquele que fez nascer o dia, e que aparecem sempre no telhado, como guias, dizendo-se capazes de antecipar todos os movimentos da luz. E se por uma vez aceitássemos que é o excesso de luz o que, hoje, ameaça derreter-nos? Todos esses ecrãs já levam a melhor sobre o astro rei, e há muito que a este povo dos “sonhadores definitivos” nem é dada margem para trocar coordenadas e discutir os movimentos que ainda capta no escuro. Mais luz não, pôrra! Chega dessa cretinice toda emproada e em tom sapiencial. Já só nos pode guiar o facto de nos sabermos desesperadamente perdidos. Estamos cercados de todos os lados. Daqui para a frente qualquer passo terá de ser dado aceitando todos os perigos e as maiores dificuldades. Vamos lá saber onde raio se perdeu a noite.
 
 
 
 
          
      
 
  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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