segunda-feira, março 07, 2022


Talvez isto seja grande parte do mundo, o que sobrou
ou se veja daqui as coisas que importam
a guerra durou mais que o esperado, no fim nem uma ideia
de um lado ou do outro, mas o frio ao menos
ficou bem mais espaçoso e hoje é fácil ficar longe
do rebanho leproso da poesia
quase esquecemos esse uso que se dava à mão
e das estações pouco há a dizer, o inverno ainda funciona
ainda sabemos criar a noite, dos lobos seguir a música
vamos sendo difíceis de ver, não há quartos suficientes
nem luzes para ferir com tanto detalhe
importunamos os leitores se um verso nos sobe à boca
era isto ou abdicar de vez, e se hoje falhamos o alvo
os riscos são óbvios, mas por fim demos cabo do orgulho
que enchia o peito de tantos, é mais duro por estes dias
os pássaros também só cantam já para uns poucos
faz muito que a minha alma desdentada quase só sussurra
o melhor, dizem uns, é surpreendê-los em pleno sonho
há no entanto quem não resista a um uniforme
há quem só sinta a imaginação fresca na presença de freiras
e voltámos às piores listas, a encimar a infâmia
os jovens estão novamente em peso na linha de fogo
como a reles ladrões cortam-lhes as mãos
mas resta o sorriso um olhar que demoramos até ao pavor
o café circunda a cratera, mas ninguém sabe dizer
o que ali caiu, se foram os americanos que o levaram
depois das searas o olhar ainda alcança o ribeiro
lá onde as mãezinhas deles se lavam, e diz-se do horror
de tudo, das canções cheias de mexericos 
partes íntimas que não se deixam ver nem documentar
vão-nos faltando gestos com que espantar as moscas do tédio
não somos sucessivos, feridos de emoções atrozes
por mais que nos esforcemos o fogo não pega
não é da natureza das coisas íntimas darem-se a ele
talvez a poesia ainda se faça na cama como o amor
e os seus lençóis desfeitos sejam a aurora das coisas
mas tão poucos corpos guardam marcas
queimaduras de tantos graus, fica-se sempre na orla
do bosque onde os gritos se ouvem, mas se fugimos
um eco de outro mundo não deixa de nos seguir até casa


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