sábado, março 12, 2022


Nem nos incomoda a ficção dos desaparecidos
com todo o proveito que há nisso,
mas se hoje faltam corpos, a sua floração
incisiva, há muito que descobrimos as zonas
onde a luz não tem tocado, e daí o esforço
de puxar o coração para a superfície
ainda que só possamos vê-lo nos espelhos.
Se a boca é todo o alcance que nos deixaram,
prendo uma corda de violino da cama à mesa
a ver se o quarto soa do outro lado da cidade, 
pois tenho pressa, quero olhar de perto
o modo como as coisas mais baixas ainda
mudam de forma, e entre elas nos é dada
a medida exacta dos deuses comidos
por obscuridades. Talvez o fim do mundo
seja só o aquecimento, e este que aí está
ainda me parece demasiado doce.
Se o sangue circula grosso como dantes,
é dentro do homem que a realidade começa
a desaparecer, sobrando grainhas pisadas, 
a musa retalhada num balde com vísceras de peixe,
as poucas notas a que se agarra a memória,
e debaixo corre uma água vibrando de ecos
onde mergulhamos os cantis e bebemos.
Da árdua métrica um certo desaire ainda nos ouve, 
visões invertidas, vozes ardendo ao longe
vêm dar-nos razão, assim anoitece entre os ossos
e uma lua interior passeia entre as divisões
enquanto estudas os insectos que a seguem
e de tão próxima a chama te arranca do rosto
uma linha. O tempo já mal me atravessa
a carne, por isso tem de roer, daí as cólicas
e dores de cabeça, este espectáculo que chama
cada vez mais e mais pássaros ao amanhecer.

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