quarta-feira, março 23, 2022

 

Era um pequeno homem, um homúnculo, querendo admirar-se de si, não do mundo, que lhe parecia só matéria de avistamento para alargar o vocabulário, mas que chamava as coisas como se as fechasse em jarros, e não era tão importante ter aquela potência combinatória, um modo de se fazer consumidor de paisagens longínquas, brilhos acelerados no espaço, mas ter uma despensa abastecida do que baste para que um possa alimentar as suas ilusões, tratar das necessidades básicas, aquelas relações de vizinhança numa choldra, versos como cigarritos, ou priscas para vigiar o hálito dos demais, a habilidade para desenhar as partes proibidas do corpo, não o desejo, esse sobrevivia só por meio de alusões e de forma cada vez mais ténue nestes gestos de contrabando, e com o tempo o próprio tráfico já não procurava colmatar certas falhas mas servir como uma ocupação, os versos já não se referiam a nada do que havia lá fora, tinham os próprios sentidos refeitos para apreciar e proteger aquela atmosfera degradada, com ele e outros a liberdade voltou a ser apontada como coisa suspeita, instituíram um código de decência e ninguém mais levantou a sua fronte de cratera molhada, todas as regras impunham um irrealismo presidiário, e as evasões planeadas eram totalmente improcedentes, quanto mais estéreis mais dignas de minucioso estudo, perdiam-se em simulações delirantes, os grandes especialistas vincavam que nem o mundo era tudo isso que alguns supunham nem estar confinado era tão insuportável assim, enalteciam a lucidez dos espíritos fatigados, do idioma faziam uns dados, uns berlindes com que se distraírem estes que com o gotejar dos dias exibiam cada vez maiores parecenças com fantasmas, eram seres de realidade ilusória, escreviam-se de umas celas para as outras numa linguagem muito distante das coisas, quase avessa, realmente alérgica ao mundo, temiam as relações directas, e ainda mais esses nexos que abalam as aparências, e condenavam à solitária quem quer que produzisse, mesmo que por acidente, imagens dessas que ferem a mímica daquele regime de estupor, aquele tom pueril, declamatório, aquela permanente comoção tão dada a abandonar os instintos mais ferozes, agarrando-se exclusivamente ao instinto de conservação individual, e isto no sentido mais medíocre, orientando-se para os pequenos ganhos, as vantagens e favores trocados, os modos de se colocar em evidência sempre da forma mais patética, num circuito cretinizante que nem roça ou admira aquela troca vertiginosa entre os seres desligados deste maquinismo, deste regime de contenção e cálculo, ali os nomes todos trabalham como metástases, há uma electrocussão que deixa a a língua enrolada na boca, num comedimento de natureza avara, fica a casa vazia e trancado nela o eco sem o grito que todavia o teria gerado, essa obra pura e perpétua que exprime a sua natureza desnecessária, a sua função de crisálida onde o vazio vai eclodindo de forma incessante nesse ritmo entorpecente, onde os dias se sucedem num tempo alheio, e os mortos atrapalham vagamente a memória, incapaz de suster tantas teias, tanto esforço para segurar o mesmo dia, esse projector nos rostos que repetem cenas, deslocando-se entre os móveis que de tão polidos lembram ossos, ruínas entre as quais soam variações das mesmas falas retardadas, e, sempre que um morre, os outros pedem-lhe desculpa, desculpas por lhe sobreviverem sem nada a acrescentar, no fundo, não há quem sobreviva a ninguém neste cenário, pois tratam-se somente de aparências estes/isto que segura o eco, e só sobrevive verdadeiramente aquele talento dos mais velhos para seduzir os mais novos, atraindo-os para a inexpressão, para os espasmos da matéria sem mundo, jogos de mistificação, e, assim, perguntar o que fica é tão doloroso como querer saber o que falta, pois cada vez mais vivem todos em cada um, enquanto ausentes o habitam como casa em tempo alheio, com tamanha ansiedade de persistir, morrem do mesmo para o mesmo, esperando que as suas cinzas sejam a dose que se revelará fatal para a memória e que, por fim, o eco se interrompa com eles.

 

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