when its basic illusions
have
been exhausted.”
—Arthur Miller
Num país destes mais importante seria ouvir aquilo que por esta hora seria considerado inconveniente, todas essas coisas que ninguém se lembraria de dizer, revelando as traições cheias de cálculo, as cedências feitas, as tantas vantagens e favores trocados, os entusiasmos frios que mantêm unida a tribo, como por vezes num homem se encontram todos os mecanismos da extorsão que se exerce por meio da cultura e em seu nome, como se conseguem erigir projectos e segurá-los contra cada geração que chega depois, estas casas muradas que servem a perpetuação de um orgulho funesto, o desses homens para quem a grande surpresa seria a ideia de que o mundo não fosse empacotado logo depois da sua morte ser anunciada, e assim se vai vendo como, com o passar dos anos, tantas vozes funcionaram nesses arranjos que levam a que as flores percam o seu cheiro umas nas outras, a sua capacidade de contraste e também de cisão, pois não nos faltam obreiros cuja propulsão se deve ao impulso que esta sociedade melhor reconhece e mais premeia, a epopeia do ego, o eterno deslumbramento do mitómano consigo mesmo, esse que estuda os fenómenos com certa desenvoltura e urgência e os inclina para si, que toma um papel em tudo, não encontra limites para a sua curiosidade, a qual assume frequentemente a forma da ingerência, e triunfa agregando todos os exemplos, deixando de lado neles as virtudes mortíferas, aproveitando aquela adesão que é própria da má consciência burguesa, estes são, em certo sentido, os ministros dessa forma de absolvição de toda a radicalidade, os que operam a conversão a partir do momento em que foram já sepultados os criadores com a sua implacável fé, o seu ódio insubornável, oferecendo essa segunda vida destituída dos aspectos mais violentos e desagradáveis para se avançar com a hagiografia, trazer para o regime de catequese, essa disposição bafienta de quem consegue admirar tudo e o seu contrário, são estes os engenheiros dessa subtil interdição, oferecendo os sacramentos de uma cultura que prevalece enquanto razão caduca, operando uma inversão dentro da memória mítica, que não passa, afinal, de uma rendição, de um modo combinatório que consegue colocar tudo no mesmo plano, desarmar os últimos seres onde a cólera investe ainda contra os deuses e os seus ditames, não por inveja, mas pelo mais legítimo ressentimento, a animosidade de quem não compactua com a condição de um mundo dissoluto, com estas figuras que surgem entre nós como guias espirituais e que são piores ainda que os padres, uma vez que o seu ministério é a própria disfunção e ineficácia do que primeiro alimentou uma paixão, o que fez dela essa força insuportável por ser tão fiel a si mesma, tão intransigente nas suas opções, e é isto que eles tratam de sanar, vindo com as suas hábeis camisas-de-forças, todas as suas medidas dissuasoras até chegar à cadeira eléctrica, em nome de deuses banais, assim vão cindindo tudo, e isto agrada a um público que vai gerindo a sua indiferença diariamente, num mundo onde se tem a sensação de estar permanentemente em falso e com vontade de passar a outra coisa, o que funciona, na verdade, como uma estratégia para se fingir envolvido no que vai ocorrendo mas sempre a uma distância segura, e manejar os sentimentos, exprimi-los com certa eloquência precisamente para tirar o corpo fora, convinha por isso mergulhar mais fundo nas motivações desse enciclopedista da indefinição contemporânea, esta espécie de promotor das obras e ideias que se dedicou à sua encenação enquanto fantasmagoria, ou seja, a reordenar formas já destituídas da sua função presente e actuante, do seu índice de resistência, do seu rasgo apavorante, comparecendo meramente enquanto estéril assombração, no nível mais raso, esse que nos entrega um atrás de outro os seus produtos estéticos, nesse momento em que a cultura é apenas um viveiro para seres em tudo semelhantes, um aquário para esses peixinhos que gostam de ser alimentados à mão, e é para esta audiência que trabalha um certo teatro, para uma memória que opera precisamente pela transposição das ruínas, produzindo essa miserável erudição, e são estes os nossos ministros, e só isto explica tamanha adesão, sempre acrítica, e o registo processional, a inescapável homenagem que entre si trocam os parasitas. É uma vida que se vai dizendo por meio de sucessivos adeuses, cuja crónica se faz sempre em tom lamentoso, para reforçar as perdas, e é isso que garante o êxito desta funerária, sem mãos a medir na tarefa de velar o cadáver da época, nessa sentimental e nauseabunda forma de amolecer a consciência.
Sem comentários:
Enviar um comentário