terça-feira, dezembro 28, 2021


Também tu um dia serás só o que bebes,
batendo o olhar contra reflexos dez mil vezes 
distorcidos, a encher outro caderno
de notas e confissões sem acentos ou pontuação.
Nos sonhos apenas restos flutuantes,
a imensa deriva de um século separado.
Tudo quebrado, desde a forma e o ritmo
que dá corda a coisas destas,
ao nariz do tipo que as escreve.
Entre as ruas que mantêm fixo o hemisfério
da noite, virás pelo gosto delirante
de te sentires ameaçado, perseguido.
Pouco ruído, cada vez menos homens.
Algum buraco aqui, na roupa, no rosto
que nos fala, na mesa que suporta o teu peso
e que deixa pingar esse estranho e escuro
líquido que de ti fica como rastro
num mundo que não se parece com nada.
De cada vez que despertas, retirada dos bolsos
toda a incerteza sobre a história que ouves
aos pedaços, um estranho recibo, um pó bem frio
como se a realidade se desfizesse nas pontas,
a lembrança, o cheiro a mijo e a jasmim,
as mulheres que tomam banho nos filmes,
e a vida antes dos corpos, do desejo 
quando parecia capaz de nos levar
para o lado mais vivo, bruto.
Mossas, caules, estrias, o tremor da atmosfera,
e de vez em quando a sensação de que tudo
se passa dentro de uma garrafa.
Nem a chuva nem as marés nos molham,
as forças que nos restam não se medem já
com este lugar, e às vezes imploramos,
outras receamos que o vidro se estilhace,
nos bebam a vida de um trago,
que esta porra estale de cima abaixo,
e algum estrondo sacuda tudo ao redor,
que a dor seja a única coisa que faz sentido
e que imponha enfim as suas próprias leis.


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