terça-feira, janeiro 04, 2022


Para o Vasco

Cada vez nos parece mais desafiante a ideia
de desaparecer simplesmente,
não mostrar a cara nem os dentes,
não dar-lhes a satisfação nem outra coisa,
preferir explicar os pássaros do que a si mesmo,
mexer com a colher do lado lento
que se alaga e persiste, e ver
as ilhas reordenarem-se seguindo a corrente,
ouvir a poeira enlouquecida assentar,
e a luz quando a pele da tinta por fim cede
derramando-se sobre a raiz da mesa,
subindo a memória, dando voltas
ao farol, e sentir ainda como algo mais se move
junto a nós, na escuridão,
esse retinir dos espíritos em ruas estreitas,
a demora das estrelas desacertando o rumo
dos que se aproveitam da noite
para explorar os meandros da própria solidão.
De regresso à cozinha, esvazias a garrafa
e a flor do vinho cola-se à garganta,
reparas no vaso quebrado e nos cacos
que permanecem no mesmo lugar há anos,
desde a tarde que continua a absorver tudo, 
do acidente de que não é preciso falarmos mais.
A sombra decorou a posição das flores,
mas seria difícil falar-lhe deste tempo,
da doença que tem feito as rondas lá fora,
desse terror das estórias que se conta
desde sempre às crianças,
para envenenar-lhes os sonhos,
para que a imaginação seja apenas o lobo
que pela vida fora nos vem deitar
e nos faz dormir sobre o nosso próprio mijo.


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