segunda-feira, dezembro 20, 2021


Não levamos isto tão a sério, esta fé
e tumulto nas coisas que lemos,
mas discreto o pulso enreda a carne,
tombamos de ritmos que nos caçam de noite,
misérias sem nome dos inúmeros mortais,
até o gesto mais repetido se livrar do mundo
cosendo uma à outra as mãos em prece,
aquilo que és, um caos que soa
a uma distância íntima, a de um livro,
ou a de quadros nas paredes
fazendo estremecer a divisão,
nós com baldes e aquilo a meter água,
e logo outro naufrágio, assim se ouvisse
uma melodia que sufocasse o frágil canário
das histórias que não sobrevivem aos incêndios,
porque toda a biblioteca se sonha em cinzas 
e alguém por aí respirando a custo
entre trilhos onde estranhas flores vibram
como memoráveis passagens, tocando
uma espécie de opereta. Como estas
que se alimentam do absurdo e trazem o sol
no esqueleto, lembrando esse anjo
pesado e ligeiro como o ar que nos envolve,
esse suave mestre que abandonámos
para noutra volta darmos pelos seus restos
entre cadáveres luminosos nas moitas,
frutos ligeiramente azedos caindo ao chão
rasgando um caminho misterioso
entre pedaços e sobras, vidas deitadas no lixo.
Mas se em cacos ferimos melhor,
o nosso barro tem as suas doçuras,
e as melhores frases que me passaram pelos olhos
li-as em paredes sujas: gritos abafados,
imagens como os últimos desejos de condenados,
o circo e o terror de quem se perde
no caminho para a eternidade, 
essas unhas vivas ainda coçando em turvas
páginas de ficção, bem depois da nossa morte,
um eco vertebrado que persiste
até que a palavra"sempre" faça sentido para nós.


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