domingo, dezembro 19, 2021

As confissões de um terratenente despeitado (António Carlos Cortez)

 



É raro darmos com um depoimento em que uma figura que é só rodeios e intrujices por uma vez deixe cair o disfarce e se exponha de forma tão transparente a ponto de se ver forçada a apagar de seguida o que escreveu, dando-se conta de que revelou o indigesto ingrediente na base de tudo aquilo que prepara e tanto envolve em couves a ver se nos empurra a coisa pela goela. Eis a motivação que tudo organiza, o subtexto ou as fundações em que assentam os esforços desta figurinha enquanto crítico e divulgador, sempre com um carácter impositivo, sendo o seu trabalho uma permanente campanha eleitoral, propondo listas, candidatando-se a todos os lugares. É raro ler uma confissão como a que nos ofereceu António Carlos Cortez na sua página de Facebook, rede social que é como a porta da casa-de-banho que cada um de nós hoje partilha com o mundo, e se alguns tentam, nessa posição pouco gloriosa, ensaiar as suas capelas sistinas, outros dedicam-se à rezinguice e a dar forma a enredos intestinais, ao passo que uns quantos exprimem convictamente o desfasamento entre as suas majestosas aspirações e os modestos lucros que alcançam lá fora. Ora, se a porta deste persistente emplastro, que há muito aprendeu com a mosca a amolecer-nos a paciência, tem andado em exposição permanente um pouco por todo o país, sem que a promessa de uma nova demão consiga de cada vez fazer algo mais para elevar o baixíssimo tecto que tanto nos impõe, isto de modo a apresentar-se com a crista a roçar nas alturas, por uma vez a absoluta infantilidade que caracteriza os seus devaneios consegue aliar a absoluta sinceridade a uma absoluta falsidade, e é assim que vemos a empertigada personagem, que anda há umas duas décadas numa de videirinho, insinuando-se nos salões, e tendo penetrado nos catálogos de tudo o que sejam colecções de poesia, um tipo que anda sempre na jogada, no conluio, sempre com as comadres, desdobrando-se nessas formas de caciquismo para se fazer o alvo de prémios e distinções, as quais, além de uns trocos, hoje apenas servem de consolo quando os leitores se marimbam nessa cegada toda, é este ser cuja própria existência se tornou uma espécie de anedota quem nos vem agora falar em seriedade, queixar-se do provincianismo crítico que lhe embacia o prestígio. E se alguém assim chega a causar-nos nervosismo, isso deve-se a ser, não apenas um pretensioso patego, mas um tipo que nos dá um vislumbre bastante doloroso do que se pode esperar dos taralhoucos amanhãs que cantam desalmadamente. Eis o nosso Cacofonix, bardo que se acha genial, com quem não adianta discutir seja o que for, e que, com todo o assanho, despe e veste fantasias à nossa frente, não se decidindo se quer ser uma espécie de poeta laureado, um educador da nação ou um dos seus directores espirituais, e tanto dá uma de ser luminoso como, na hora seguinte, se lança num arrazoado, vindo-nos com exigências e lamúrias, numa escrita precipitada e desleixada a explicar como todos lhe devem e ninguém lhe paga, aproveitando para nos fazer a visita guiada pelo museu da sua linhagem, e não se cansa de se expor como exemplo dos mais altos valores, os seus ideais imensamente saudáveis, sempre com a pinta de conde falido, todo lampeiro a correr a tudo o que sejam sessões onde insiste em abrir parêntesis chatíssimos, falando como escreve, deixando-nos diante daquela papa enfadonha onde tudo é mais ou menos medíocre e sem importância, de peito sempre cheio, a dar ordens para que o sigamos, “cavalguemos para os bosquetes dos antigos rouxinóis e das antigas rosas rumo aos postais do antigamente” (Gombrowicz), e, com esse ar presunçoso de quem está sempre a arribar, sempre com uns papéis na mão a insistir que o ouçam, umas rimas xaroposas, umas referências como beatas na primeira fila da igreja, com o seu ar tresloucado, deixa-se atraiçoar por uma vaidade descabida mesmo numa época tão frívola, e, não se contendo, parece acariciar-se enquanto expõe esse desejo de ser acolhido entre o extático clamor de uma imprensa imensamente benévola, insuflando-o por fim à condição que julga sua por direito natural, a de poeta nacional, santificado génio que seria levado a desfilar em cada província, e depois também lá fora, isto para proveito da humanidade em geral. É curioso ver estas figuras sempre tão estelares, tão dispostas a acolher-nos na dádiva do seu brilho, reconhecerem, afinal, como vagam nessa zona de dolorosa insuficiência, como andam chapinhando no quarto nesses venenos de ambições insatisfeitas, e deste modo vão confessando como escrevem, não por um desejo de ir ao encontro desses elementos de solidão e de auto-suficiência, criando obras que sejam em si mesmas a paga pelo esforço que exigem, praticando uma arte que encontra satisfação e razão em si mesma, mas antes desejando honrarias, encómios semanais, fotografias de página inteira, destaques nos jornais e nas revistas, repercussão e fama, e então vemos como é curto o horizonte destas figurinhas, como em vez de um confronto entre a obra e um juízo crítico severo, apenas anseiam por trocar o espelho pelas páginas dos suplementos, nomeadamente essas que vão ainda chegando à pífia juventude que nos resta, as do Ípsilon. E acordam dos seus sonhos molhados sobre as folhas do jornal estendido no soalho, num estupor em que não sabem ao certo se enfim foram coroados, e obtiveram a merecida evidência mediática, a celebração das “estrelas de qualidade”. Mas é curioso que seja esta espécie de penetra, este que se infiltrou em tudo o que eram instâncias do paroquial poder literato, que traficou e se fez agraciar com todos os títulos das nossas exultantes confrarias provincianas, é curioso que seja este cobiçoso pelintra quem agora nos vem dar lições de honestidade, e indignar-se muito porque ele e a pandilha que derrubou todo o prestígio que teve em tempos a colecção de poesia da Dom Quixote não encontram eco para os argumentos publicitários que se constroem, vindo mostrar-se lívido pelo desprezo que nos merece essa comandita de medíocres que começa em Manuel Alegre e Nuno Júdice, passa por Fernando Pinto do Amaral, Ana Luísa Amaral, Eduardo Pitta, João Rui de Sousa, antes de acabar neste charavaneco que faz as vezes de pajem do lirismo, e nos vem assegurar que é com ele e esses senhores que está assegurada a grande linhagem da poesia cumpridora de todos os requisitos, a que vai da narrativa ao soneto, levanta as saias todas à moçoila e põe-se a cheiricar tudo o que possa ser vertido em fórmulas de serôdio erotismo, sem nunca deixar de lado a reflexão sobre o mundo, e, claro, a meditação sobre a própria poesia; ali há música, diz ele, e imagens, garante, e a verdadeira consciência da tradição. E em face disto, que desonestidade vem a ser essa? Nas suas contradições estupendas, esta comovedora diatribe dirige-se a uns quantos, pobres coitados afinal, que parecem gerir para aí uma tremenda intriga contra estes aristocratas do lirismo, e é então que esta ficção delirante se enche de insinuações, misturando mexericos, torpezas de todo o tipo, apontando o dedo sempre a dois ou três que, naturalmente, não merecem ser mencionados pelo nome... Se ao menos houvesse um código para punir ofensas do espírito, então, certamente haveriam de rolar algumas cabeças. O que nunca passou por aquela cabeça é que possa, entretanto, ter surgido uma geração que se está nas tintas para as sobras do antigo prestígio, de resto um mito de que valeu sempre a pena desconfiar, uma geração que prefere dispensar subsídios, aplausos ou esses pequenos mimos com que o Estado e a sociedade vão engaiolando os pássaros que não respeitam a pauta, e que, também assim, renuncia a tudo o que sejam maneirismos de salão, essas cortesias de quem só se revê em cenários de grandeza e notabilidade, uma geração, em suma, apostada em arrasar o zodíaco dos condes e dos duques desse pindérico firmamento, para arrastar de volta a arte para a sua função perturbadora, essa zona nascente, capaz de infamar, produzir novos distúrbios, onde quem por lá anda investe o fôlego em gozar à fartazana, pôr à prova a sua natureza, escrevendo “da mesma maneira que uma criança faz as necessidades ao pé de um arbusto para se aliviar” (Gombrowicz uma vez mais), e também assim, bate naquilo que a irrita, combate o que se atravessa no seu caminho, respeitando a uma intuição e emoção que a guia, ligando a escrita a um prazer imediato, passando a tinta sobre os contornos do que quer que lhe venha à cabeça. Nada disto está ao alcance deste desolado espécime, este molusco que nos vem sempre com a sua defesa de uma literatura amolecida por várias tias bondosas, e que o que precisa não é de se ver confrontado com a crítica literária, mas antes com uma análise da parte da sociologia da cultura que lhe faça ver que, ao contrário do que imagina, ele não é de modo nenhum um protagonista mas tão-só um sintoma epocal, esse que caracteriza uma incerta quantidade de gente desesperadamente à procura de quem veja neles tudo isso que precisamente lhes falta. Um vazio que espera que as crianças façam as necessidades lá dentro a ver se aquilo se enche dando impressão de haver ali qualquer coisa.

 

E aqui fica o precioso depoimento, entretanto apagado:

RESPOSTA A UMA PERGUNTA SOBRE A CRIICA DE POESIA EM PORTUGAL FEITA ONTEM POR UM LEITOR NA TRAVESSA. 

Ontem, questionado sobre por que razão os poetas que publicam na Dom Quixote, não merecem jamais a crítica por parte de quem escreve no Ípsilon, nada consegui dizer. Todavia, hoje, talvez possa apresentar 3 causas.

1. A ideia provinciana de que, publicando-se numa chancela que pertence a um grande grupo editorial, se é alguém que desmerece da crítica isenta, não-institucional, aquela crítica que cita Benjamin e Derrida, Marjorie Perloff e defende marginalidades de pose made in Berlim-Paris, com Bukowskis e Pachecos a servirem de modelo, a acompanhar com um quê de prosa à la João César Monteiro (que bem se borrifou para quem imitava os autênticos - como ele - independentes). Esse provincianismo crítico, tão bem acolhido e até patrocinado por sectores universitários que levaram ao colo os papas e as papisas da marginalidade de pacotilha, minou a recepção da poesia em Portugal. Aconteceu e acontece mesmo só ser possível ter-se as estrelinhas de qualidade se se escrever à maneira prosaica de quem escreve poesia em verso live, já que domínio técnico, isso é coisa pretensiosa. É ornamental. Sucedeu que se perseguiu e se persegue em especial todos os que não pactuaram com os "baixos-prosa" de muita produção dos últimos 20 anos.
Assim, não espanta que medre o preconceito e a intriga, uma forma de censura feita silêncio de cada vez que os autores dessa chancela publicam os seus livros de poesia, justamente porque representam uma tradição que diverge dessa linha revanchista e caceteira que, vinda dos anos 70, teve e tem os seus epigonos. Ainda que, graças aos deuses, as serpentes se tenham mordido e envenenado mutuamente e o Pai deles todos os tenha traído, como era, afinal, previsível. Fica fiel ao provincianismo, e só isso fica, essa crítica tendenciosa, míope, que verá sempre na poesia uma forma de poder. Nada mais.

2. A ideia de que tais autores que na Dom Quixote publicam encarnam o lirismo mais passadista, ou são representantes dum poder que os impolutos e mui sapientes derridadadianos devem combater, quais paladinos do bom gosto e da verdadeira liberdade. Por isso, se é certo que há poesia excelente a sair em pequenas editoras, ou em editoras que não pertencem a nenhum empório, tb é verdade que não é garantia de qualidade literária o publicar-se nessas pequenas editoras. Assim como assim, não deixa de ser sinal de menoridade intelectual o nunca escrever-se sobre esses autores que representam esse lirismo (onde há poesia narrativa e soneto, onde há erotismo e reflexão sobre o mundo, onde há meditação sobre a própria poesia, onde há música, imagens e consciência da tradição - Sim, refiro a poesia de Manuel Alegre, de Nuno Judice, de Fernando Pinto do Amaral, mas poderia lembrar a justo título Ana Luísa Amaral, Eduardo Pitta, João Rui de Sousa, ou o recente autor que em boa hora se decidiu publicar, Salvador Santos, poetas que raras vezes ou mesmo nunca, em alguns casos, foram objecto de crítica lá no assento etéreo, ou quando o foram tiveram como brinde a recensão maldosa, venenosa, de ataque puro e duro); lirismo (ai que palavra!!) que difere das modas narrativo-descritivo-marginais-a-armar-à-dicção-brasileirinha-da-moda-ou-bukowskiana-da-mesma-moda, tudo poesia-piada, poesia de títulos que lembram tudo menos poesia.

3. A simples ilusão de que, exercendo-se critica de poesia, convém ser monstro rangendo na treva os ódios que conduzem ao respeito. Essa subversão tão portuguesa de se confundirem as coisas, o essencial com o acessório.
Essencial é escrever poesia, publicá-la. Para quem faça crítica, essencial é conhecer quanto se publique, seja nas grandes ou nas pequenas editoras. Ler e dar a ler os poetas que, mesmo que não sejam da nossa família literária, trazem para a poesia aquele ponto luminoso que faz com que o dia seja menos sofrido, acrescentando imaginação e estranheza, alguma magia a este paupérrimo quotidiano em que vivemos. Quando se percebe que nos balanços literários da poesia tudo o que se aponta como grande livro de poesia é exactamente o mesmo de há 3, 5, 8, 10, 14 anos, fica tudo dito. 
Não ter jamais qualquer eco do que escrevemos nos suplementos da chamada imprensa inteligente, isso é sinal de que está tudo bem. Tudo exactamente como há quinze, ou vinte anos. Porque, regresso a uma frase que me tem andado cá dentro:
em Portugal nada muda e nada se transforma.
E, de resto, se sempre seremos mal-interpretados, tidos por pretensiosos e algo mais porque, no fundo, seguimos o nosso caminho e falamos com a franqueza de quem quer viver amando a vida e não adorando a morte, então, seja como tem de ser. Nada se escreva, finja-se que este ou aquele poeta não existem, silencie-se o mais possível, ironize-se, ou actue-se com sarcasmo, ou sejam connosco condescendentes... Há tanto modo ínvio de se estar vivendo e escrevendo em Portugal...
Eu por mim, que até tenho escrito sobre poetas-criticos que jamais teriam a verticalidade de ao menos referir um só título meu, estou ciente de algo muito humano: daqui ninguém sai vivo. Por isso é que devemos tentar, ao menos tentar, se acreditamos em alguma coisa de belo, ser generosos, abertos, disponíveis.
A crítica de poesia, que hoje todos dizem não existir, a poesia, que hoje se quer acantonada, quanto mais não seja, a pouca que se faz, que seja isso: uma adesão ao que há. Se isso não acontece... É uma faceta portuguesa, nada mais.
Deveria ter dito isto ontem. Escrevi-o agora. Vale a pena? Muitos dirão que não. Eu direi que depende dos dias. Hoje vale a pena. Amanhã talvez não perdesse um minuto a pensar nisto.

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