
É raro darmos com um depoimento em que uma figura que é só rodeios e intrujices por uma vez deixe cair o disfarce e se exponha de forma tão transparente a ponto de se ver forçada a apagar de seguida o que escreveu, dando-se conta de que revelou o indigesto ingrediente na base de tudo aquilo que prepara e tanto envolve em couves a ver se nos empurra a coisa pela goela. Eis a motivação que tudo organiza, o subtexto ou as fundações em que assentam os esforços desta figurinha enquanto crítico e divulgador, sempre com um carácter impositivo, sendo o seu trabalho uma permanente campanha eleitoral, propondo listas, candidatando-se a todos os lugares. É raro ler uma confissão como a que nos ofereceu António Carlos Cortez na sua página de Facebook, rede social que é como a porta da casa-de-banho que cada um de nós hoje partilha com o mundo, e se alguns tentam, nessa posição pouco gloriosa, ensaiar as suas capelas sistinas, outros dedicam-se à rezinguice e a dar forma a enredos intestinais, ao passo que uns quantos exprimem convictamente o desfasamento entre as suas majestosas aspirações e os modestos lucros que alcançam lá fora. Ora, se a porta deste persistente emplastro, que há muito aprendeu com a mosca a amolecer-nos a paciência, tem andado em exposição permanente um pouco por todo o país, sem que a promessa de uma nova demão consiga de cada vez fazer algo mais para elevar o baixíssimo tecto que tanto nos impõe, isto de modo a apresentar-se com a crista a roçar nas alturas, por uma vez a absoluta infantilidade que caracteriza os seus devaneios consegue aliar a absoluta sinceridade a uma absoluta falsidade, e é assim que vemos a empertigada personagem, que anda há umas duas décadas numa de videirinho, insinuando-se nos salões, e tendo penetrado nos catálogos de tudo o que sejam colecções de poesia, um tipo que anda sempre na jogada, no conluio, sempre com as comadres, desdobrando-se nessas formas de caciquismo para se fazer o alvo de prémios e distinções, as quais, além de uns trocos, hoje apenas servem de consolo quando os leitores se marimbam nessa cegada toda, é este ser cuja própria existência se tornou uma espécie de anedota quem nos vem agora falar em seriedade, queixar-se do provincianismo crítico que lhe embacia o prestígio. E se alguém assim chega a causar-nos nervosismo, isso deve-se a ser, não apenas um pretensioso patego, mas um tipo que nos dá um vislumbre bastante doloroso do que se pode esperar dos taralhoucos amanhãs que cantam desalmadamente. Eis o nosso Cacofonix, bardo que se acha genial, com quem não adianta discutir seja o que for, e que, com todo o assanho, despe e veste fantasias à nossa frente, não se decidindo se quer ser uma espécie de poeta laureado, um educador da nação ou um dos seus directores espirituais, e tanto dá uma de ser luminoso como, na hora seguinte, se lança num arrazoado, vindo-nos com exigências e lamúrias, numa escrita precipitada e desleixada a explicar como todos lhe devem e ninguém lhe paga, aproveitando para nos fazer a visita guiada pelo museu da sua linhagem, e não se cansa de se expor como exemplo dos mais altos valores, os seus ideais imensamente saudáveis, sempre com a pinta de conde falido, todo lampeiro a correr a tudo o que sejam sessões onde insiste em abrir parêntesis chatíssimos, falando como escreve, deixando-nos diante daquela papa enfadonha onde tudo é mais ou menos medíocre e sem importância, de peito sempre cheio, a dar ordens para que o sigamos, “cavalguemos para os bosquetes dos antigos rouxinóis e das antigas rosas rumo aos postais do antigamente” (Gombrowicz), e, com esse ar presunçoso de quem está sempre a arribar, sempre com uns papéis na mão a insistir que o ouçam, umas rimas xaroposas, umas referências como beatas na primeira fila da igreja, com o seu ar tresloucado, deixa-se atraiçoar por uma vaidade descabida mesmo numa época tão frívola, e, não se contendo, parece acariciar-se enquanto expõe esse desejo de ser acolhido entre o extático clamor de uma imprensa imensamente benévola, insuflando-o por fim à condição que julga sua por direito natural, a de poeta nacional, santificado génio que seria levado a desfilar em cada província, e depois também lá fora, isto para proveito da humanidade em geral. É curioso ver estas figuras sempre tão estelares, tão dispostas a acolher-nos na dádiva do seu brilho, reconhecerem, afinal, como vagam nessa zona de dolorosa insuficiência, como andam chapinhando no quarto nesses venenos de ambições insatisfeitas, e deste modo vão confessando como escrevem, não por um desejo de ir ao encontro desses elementos de solidão e de auto-suficiência, criando obras que sejam em si mesmas a paga pelo esforço que exigem, praticando uma arte que encontra satisfação e razão em si mesma, mas antes desejando honrarias, encómios semanais, fotografias de página inteira, destaques nos jornais e nas revistas, repercussão e fama, e então vemos como é curto o horizonte destas figurinhas, como em vez de um confronto entre a obra e um juízo crítico severo, apenas anseiam por trocar o espelho pelas páginas dos suplementos, nomeadamente essas que vão ainda chegando à pífia juventude que nos resta, as do Ípsilon. E acordam dos seus sonhos molhados sobre as folhas do jornal estendido no soalho, num estupor em que não sabem ao certo se enfim foram coroados, e obtiveram a merecida evidência mediática, a celebração das “estrelas de qualidade”. Mas é curioso que seja esta espécie de penetra, este que se infiltrou em tudo o que eram instâncias do paroquial poder literato, que traficou e se fez agraciar com todos os títulos das nossas exultantes confrarias provincianas, é curioso que seja este cobiçoso pelintra quem agora nos vem dar lições de honestidade, e indignar-se muito porque ele e a pandilha que derrubou todo o prestígio que teve em tempos a colecção de poesia da Dom Quixote não encontram eco para os argumentos publicitários que se constroem, vindo mostrar-se lívido pelo desprezo que nos merece essa comandita de medíocres que começa em Manuel Alegre e Nuno Júdice, passa por Fernando Pinto do Amaral, Ana Luísa Amaral, Eduardo Pitta, João Rui de Sousa, antes de acabar neste charavaneco que faz as vezes de pajem do lirismo, e nos vem assegurar que é com ele e esses senhores que está assegurada a grande linhagem da poesia cumpridora de todos os requisitos, a que vai da narrativa ao soneto, levanta as saias todas à moçoila e põe-se a cheiricar tudo o que possa ser vertido em fórmulas de serôdio erotismo, sem nunca deixar de lado a reflexão sobre o mundo, e, claro, a meditação sobre a própria poesia; ali há música, diz ele, e imagens, garante, e a verdadeira consciência da tradição. E em face disto, que desonestidade vem a ser essa? Nas suas contradições estupendas, esta comovedora diatribe dirige-se a uns quantos, pobres coitados afinal, que parecem gerir para aí uma tremenda intriga contra estes aristocratas do lirismo, e é então que esta ficção delirante se enche de insinuações, misturando mexericos, torpezas de todo o tipo, apontando o dedo sempre a dois ou três que, naturalmente, não merecem ser mencionados pelo nome... Se ao menos houvesse um código para punir ofensas do espírito, então, certamente haveriam de rolar algumas cabeças. O que nunca passou por aquela cabeça é que possa, entretanto, ter surgido uma geração que se está nas tintas para as sobras do antigo prestígio, de resto um mito de que valeu sempre a pena desconfiar, uma geração que prefere dispensar subsídios, aplausos ou esses pequenos mimos com que o Estado e a sociedade vão engaiolando os pássaros que não respeitam a pauta, e que, também assim, renuncia a tudo o que sejam maneirismos de salão, essas cortesias de quem só se revê em cenários de grandeza e notabilidade, uma geração, em suma, apostada em arrasar o zodíaco dos condes e dos duques desse pindérico firmamento, para arrastar de volta a arte para a sua função perturbadora, essa zona nascente, capaz de infamar, produzir novos distúrbios, onde quem por lá anda investe o fôlego em gozar à fartazana, pôr à prova a sua natureza, escrevendo “da mesma maneira que uma criança faz as necessidades ao pé de um arbusto para se aliviar” (Gombrowicz uma vez mais), e também assim, bate naquilo que a irrita, combate o que se atravessa no seu caminho, respeitando a uma intuição e emoção que a guia, ligando a escrita a um prazer imediato, passando a tinta sobre os contornos do que quer que lhe venha à cabeça. Nada disto está ao alcance deste desolado espécime, este molusco que nos vem sempre com a sua defesa de uma literatura amolecida por várias tias bondosas, e que o que precisa não é de se ver confrontado com a crítica literária, mas antes com uma análise da parte da sociologia da cultura que lhe faça ver que, ao contrário do que imagina, ele não é de modo nenhum um protagonista mas tão-só um sintoma epocal, esse que caracteriza uma incerta quantidade de gente desesperadamente à procura de quem veja neles tudo isso que precisamente lhes falta. Um vazio que espera que as crianças façam as necessidades lá dentro a ver se aquilo se enche dando impressão de haver ali qualquer coisa.
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