terça-feira, dezembro 14, 2021

As pulgas de Dante

 


A cultura coça-se como se este tempo não tivesse um abismo próprio, tão só esse charco onde se remira, se embevece fazendo caretas, mascando a pastilha gorila sabor-Manguel, a soprar o pequeno balão das inaninades da literatice, agora que o país assumiu enfim a sua letal vocação enquanto lar da terceira idade para virem para ai chinelar os reformados da coisa, esse beatério azucrinante, com as suas iniciativas de fincar fundo as esporas em bichos de carrossel, para segurar tudo na mesma velha volta, com o bilhete de feira para a casa onde nenhum dos heterónimos dorme, sempre com estas visitas demorando-se, fazendo da posteridade o pior dos castigos, dando-se chá, mordendo o croquete de literatura-pastelão, todos muito rizinhos, muito júdices muito castro-mendes, uma geração de poetas meias fodinhas, uns sobre os outros de babete, a recuperar dos abraços em atraso nestas soleníssimas e sonsas sessões, e, em lugar de se sentir a derrocada do espírito no esforço de digerir a época, vão apenas trocando o Inferno em inferninhos, e deixando muito claro o que vai ficando dos grandes ou dos muito grandes... De Dante, 700 anos depois, menos que o eco, chegam-nos somente as pulgas. No fim de contas é triste ver como está esta gente com tanta pressa de ser ninguém e logo por comparação. Vêm-nos com cartazes prometer grandes escavações, fantásticas exumações, mas depois dão com um osso de galinha, com qualquer coisa a cheirar a cadáver e isso já lhes serve. Enquanto uns se ficam a ciscar sombras gigantescas em glosasinhas chilras, temos depois essas sessões espíritas, badamecos a quem dá uns fernicoques, uns chiliques, como a nobre-guerra, que se põe para ali a gargarejar a água que ficou com a dentadura postiça de um trovador do séc. XVI ou coisa que o valha, isto com o miolo todo ratado já pelo adiantado da hora e a fazer vozes, a abanar a mesa, a dizer que capta a frequência dos mortos entre o canal TLC e o das televendas. Mas se der para a malta abichar umas massas, se a Bárbara puder ir sacar mais uns cobres ao erário público e a Rizo puder recolher louvores pelo ATL para os nossos gagás, fica tudo feliz, e ainda se consegue pôr a caução indo buscar alguns nomes que ajudam a fazer passar a imagem de que esta caldeirada foi ao lume e ainda esteve ali a apurar antes de ser servida.

 

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