sábado, outubro 06, 2018

É muito longa a História do "não"


Mas e são violações? Todas? Onde está a linha? E entre duas linhas, duas versões contraditórias, decide quem? Estamos dispostos a inverter o ónus da prova a este nível? É possível provar um fato negativo? E vamos corrigir uma injustiça atirando-lhe com outra em cima? E que "não" é esse? É um não no quarto, na cama? É a predação sexual o que está em causa? Ou podemos alargar substantivamente a gama de ofensas? Afinal, a violência esteve sempre aí, em promoção, e para todos os gostos, com balanço para encher-nos de traumas como de piolhos, povoar-nos o escuro, encher o pequeno espaço de uma concha de pesadelos capazes de tirar o sentido à vida. A mim parece-me que isto sempre foi confuso, e foi ficando pior à medida que começaram a surgir mais e mais juízes auto-nomeados, à medida que a opinião tomou para si a coroa, e se encheu desta empáfia prepotente e recriminadora. Era uma questão de tempo até que esta coisa das redes-sociais fizesse funcionar a sua capacidade de condicionar o espaço público e erigisse uma forma de tirania qualquer. Estava a ficar chato, tanta conversa mas tão pouca acção. Era mesmo preciso passar da telenovela faminta de escândalos e com comentários em directo, do sobe e desce entre heróis e condenados numa sondagem constante, para a orquestração de convulsões com verdadeiro peso social, e isto num você decide 24/7: tome posição num segundo, assine a petição no seguinte!, apoie a causa com o seu clique, peça a cabeça deste, atire à fogueira aquela... E era só uma questão de tempo até esse admirável mundo novo presumir que podia até suspender as regras do Estado de Direito, montar o seu próprio esquema judicial, sensível ao espirro desta longa fila de juízes, afiando o cutelo das suas convicções balofas, mas é claro, cheias de confiança, em nome de uma revolução às três pancadas. Sim, porque não há dúvida de que, cortando as cabeças suficientes, um dia ainda vamos fazer disto o céu. Só não estaremos cá para ver os anjinhos jogar à bola com elas.
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Não vou defender o Ronaldo. Quero que o Ronaldo se vá encher de moscas. Quero lá saber se violou ou não a miúda... e, sim, já sei, ela tem nome... (espera vou só ali pesquisar...) Kathryn Mayorga. Mas foda-se, isso é telenovela. Não papo esse pastelão. Não vou engolir a estória sórdida, seja neste ou naquele sentido, em nome da libertação das vítimas que tiveram a sorte de ser violadas por gajos tão fabulosamente ricos e famosos que isso deixa a salivar quase todo o mundo, servindo esta charanga voyeurista que se disfarça de programa de defesa dos oprimidos. Não é não é não, do mesmo jeito que a rosa já era a rosa antes de lhe chamarem rosa. E já o era com todos os espinhos. Agora, as violações neste buraco ou naquele, se é contra as mulheres ou qualquer outra raça entre os eternamente fodidos (e adianto que, nesse particular, ainda prefiro aqueles que não têm para as contas e nem tampouco para desfilar no baile geral da indignação), vítimas é o que não falta, nunca faltará. Injustiças estão aí bem semeadas, num cultivo intenso e bem à mão de quem quer que goste de deitar-se abraçado a si mesmo, enamorado do seu sentido de justiça, fingindo que a solução está aí, como acender a lâmpada e dissipar a escuridão. E que se pode mudar alguma coisa do dia para a noite, sem começar pelo que nos custaria a todos muito: começar pela educação, pelas dignidades mínimas, por uma justiça que seja o oposto da histeria, demorada, minuciosa. A hipótese que eu estou para aqui a ensaiar é que ninguém quer realmente mudar nada. Todos temos 99% de bondade em teoria e 1% de filhadaputice. Todos menos eu, é claro, que me daria uns 51, 52%, às vezes 77% em termos de filhadaputice. Mas também não estou interessado em ser actor de novela. O que é inegável é que se tem tentado reajustar a sociedade para, mantendo a estrutura de desigualdades, ser possível ir tirando números, enchendo a arena, saciando a multidão, que precisa muito disto, deste espectáculo atroador em que se esquece o horror que é o mundo com pequenos ajustes ad hoc. O Ronaldo ou a Mayorga são só a fera e o gladiador (cada espectador decide qual é qual) de um embate que dará para excitar o sangue nas próximas semanas. Em breve serão rendidos por outros. À excepção do sangue derramado na arena, tudo o mais é espalhafato.
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É muito longa a História do "não". A maioria deles terão sido silenciosos, ou só gemidos, nãos que teriam soado como uma piada se se ouvissem bem alto, e boa parte serviria apenas para despertar uma crueldade e gozo ainda maior em quem não estava (nem está) disponível senão para ouvir sim. Mas agora começámos a ser selectivos de uma forma bastante curiosa em relação aos "nãos" que nos preocupam. O "não" tem de ser capaz de sustentar o seu próprio reality show. Tem de expor à devassa a vida íntima de um alvo suculento, e de uma forma irrecusável, em que o público, enquanto júri, seja investido do direito de analisar espectacularmente o mais ínfimo e sórdido dos detalhes. Estão encontrados os "nãos" mais eficazes como gatilhos de dramas que sustentam e revigoram os fios desta rede, apertando-nos, mantendo o mundo inteiro colado ao ecrã. E, neste ponto, vale a pena reproduzir a passagem final do obituário de Paul Virilio, há algumas semanas, no "Público": «O mundo sem fronteiras da comunicação de massas e das redes sociais parece-lhe, pelo contrário, um lugar claustrofóbico. “Sincronizar as emoções de milhões de pessoas num mesmo momento é um poder de condicionamento que só as religiões tinham”, observa na entrevista à Science et Avenir. E avisa: "A possibilidade de um comunismo dos afectos é um novo género de tirania”.» Está, pois, encontrada a religião que sai ainda mais robustecida por nos dar a ver os nossos deuses da treta a caírem em desgraça. Nesta, qualquer papalvo disponível para perorar é imediatamente ordenado, e dá a sua missa em cima do primeiro caixote que o eleve um niquito acima das restantes cabeças. A igreja está em toda a parte. O difícil hoje, face a isto, seria encontrar alguém suficientemente estúpido para ainda morrer pelos nossos pecados.

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