Meses depois desfez a trança e o pólen dos jardins mais remotos impregnou o ar. De um vestido no chão fica um buraco por onde o coração desce mais fundo que a noite, e logo se começa a sonhar deixando o mundo fora. Dessa origem talhei um cuco, que me traz ecos, e sigo-a por esse aroma cada vez mais vasto. O tempo é a própria doença deitando no sangue a memória das galáxias, como se quisesse matar-nos de excesso, tal como apodrece a orquídea lutando pela beleza até à morte. Um zumbido de artérias turva o ar, sofro a asma, sorvo-o até à asfixia e a um fósforo tiro segundos de susto, registo à pressa as formas cruas, a realidade atrás da realidade dançando à luz dessa estrela cortada no escuro, dez mil sentidos dando harmonia ao que mal se vê. Tenho cadernos, estudos compreensivos, interrogatórios noite dentro, amo a demora. Quanto mais difícil menos me sabe a coisa minha. Caladamente me perco e na volta recolho a minha língua cheia de formigas. No fim, dou a ler à aranha que da garrafa fez a sua torre. Não me conforta, mas como ela sei que se o verso atrai moscas ao menos esteve vivo. Terei ainda ouvido para o crime dos gatos, o que os distrai, esse talento que perseguem, as espécies que caçam nos tempos mortos. A última primavera de que soubemos tem anos, desfasada como um velho jornal. Do mundo chega-nos alguma sílaba desconexa, balançando-se no vento. As xícaras estremecem à primeira carga da claridade, na hora em que a terra parece mais insegura, depois tudo retoma a pequena e suja ordem moral. Os pássaros metidos nas gavetas, as árvores servem-se dos próprios baloiços. Se o céu escurece, para lá da possibilidade de trovoada, há as composições incutidas na chuva, o modo como em casa toda a repetição aprende música. Quando a luz já não serve para ler, o corpo pede à própria sombra uma direcção. Tomamos os caminhos onde mais nos pesa quem somos. Uns passos adiante, um cavalo mastiga um grilo, a noite começa já toda estilhaçada. Só a lua com a sua navalha abre certas flores. Sei de uma ali isolada que por esta hora se fecha com um insecto na boca. E o que ele se debate. Explode em flashes, exaltando a cor e os nervos no abraço das pétalas, como uma máquina fotográfica no interior do bosque.
sexta-feira, outubro 05, 2018
Separador:
modus operandi
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário