domingo, outubro 07, 2018


O mais natural é que tudo isto acabe em desastre. E às vezes, para lá da crise e do colapso, já divisamos o nosso próprio rastro pelas últimas aldeias onde o corpo se embriaga na qualidade tranquila da luz, no modo como o vento explora as casas, meio derruídas. O abandono é sempre o grande tesouro que uma era cede à seguinte. Deixar tudo como está, no desvario de um mundo antigo murmurando na sua língua de cacos. Na sala é provável que as notícias tenham sido ignoradas a favor da música. O giradiscos passa por sublime artefacto de uma civilização digna de memória. A agulha infectada de um estranho som pinga uma gota fria que nos imobiliza. Certo é que o vinho secou finalmente em duas canecas de porcelana. Levo uma aos lábios, de um cheiro vago ou imaginado, bebo-o morno e o chão volta a estremecer. A luz repartida e triste no quarto, a sombra de um felino derramada sobre a cómoda e um frasco junta selos, moedas estrangeiras e borboletas como se fora um velho encantamento. Nesta cama, depois deles, terão dormido astros com gafanhotos. Terá sido testemunha das maiores intimidades no transtorno das estações. Já não contando ser lidos, os poucos livros suprimiram o drama, enterraram os personagens, e a tinta ficou num delírio desatando as descrições. De modo semelhante o amarelo dos girassóis mancha-nos os dedos só de olhar a imitação de Van Gogh, tão pobre mas tão fiel, talvez mais triste ainda que o original. Há outra tela no cavalete, o pincel caído, e algo como a sombra de uma mão cheia dos cabelos dela. Não me perguntes. A beleza sempre parece ocultar-nos um segredo. Aqui a chuva tem o peso inteiro da casa. Penso nas sucessivas inundações, enquanto vejo as formigas carregando às costas barcos de cinza. Pelos caminhos afogados, irmãs do silêncio, as flores não têm mais que a sua beleza e solidão. Ecoam em uníssono doces impressões que nos cobrem de abelhas o pensamento. No largo, a capela tornou-se agnóstica, as velhas loucuras foram apaziguadas. Ouvem-se ritmos distantes cruzar a superfície da terra. Os finais todos, as cidades dinamitadas pelo sonho. E a realidade que lhe escapou chegou aqui sentindo-se culpada depois de ter dado por si a ansiar por toda esta desolação.


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