Um corpo tem a lembrança excessiva de outro corpoum corpo já não tem imaginaçãonão tem paciência com nenhum outro corpoHenri Michaux
Foi-se o coração do quarto e eu fiz um buraco no meio da realidade por onde nos vejo passar, encharcados, fugidos lá de só-deus-sabe. Segredamo-nos com gestos de muito longe, assentimos. Fundamos rastos firmes nesta terra, hoje fraca, e cheiros lentos, alegrando a aragem morta. (Que desvio triunfal ao destino pulha que nos conta os dias.) Com os loucos, perdida e docemente, bater à porta da noite vertical e arcaica. As ninfas passam em bando, como sombras, putas de tambor vincam as esquinas das zonas de guerra onde se entrincheira o desejo mais vago. Exércitos disfarçados aguardam ordens no encalhe dos cafés, eu só mastigo umas hesitações enquanto os meus olhos, como dois rafeiros, raspam o fundo de outros olhares. Perdidos, estagnados. Tudo lento e asmático, entre a encenação fumarenta assistimos ao can-can das moscas. É sempre de noite na memória que roubo aos dias: um espelho erguido a medo entre corpos, um espelho que se inunda, que num instante se embaça do fulgor desta carne entreaberta a eras passadas. Ouço remos forçar as águas, empurro o meu barco sobre o brilho de um traço de cuspo a ver se amanheço noutro mundo. Cansa-me a puta desta solidão implacável, atenta a cada gesto. Aos ombros leva-me a cabeça numerosa, as infernais discussões, votações e a revisão ponto por ponto da minha defesa frente a um tribunal da menor instância possível. Arrumo os papéis e venho de lá a respirar pelo buraco do peito, baixinho, canto-me cinzas e vejo-a sempre ali, em frente, naquela pele de sol, corpo de caroço, e esse perverso pudor da mulher-criança (seios breves, corpo breve, toda ela breve). Se eu vinha de amores que me ensinaram a ter maneiras, ela parecia descolada das fitas do Godard que viu no lugar dos clássicos da Disney. E da vaga que me abriu no peito apenas me ficou a sensação de ter caído num saco de gatos. Punhais e sangues frios. Corações cheios de gritos, de ruídos, de bandeiras e, no fim, faz frio, um frio medonho. É tarde. Tiram-se as luvas cheias de sangue, tira-se a camisa cheia de sangue, diz-se qualquer coisa a esse rosto que ainda vem ao espelho recolher-nos, fechas os olhos e segues esse sono de pá e cemitério, sem nada do outro lado.
sábado, agosto 04, 2018
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