Ruy Cinatti
Quando já não importe nem nos oiça a voz
o tempo que temos,
no sangue frio se instale essa distância
segredada, tão perto,
débeis flores submersas e nós sempre
no mesmo passo, derramados como água no chão.
Abandonada a subtileza,
vem uma elegância desgraçada,
encantados só como perdidos,
e o ar que treme
ouvindo algum ditado.
Porque os caminhos são longos,
fazes-te também viajante de silêncios
e águas perdidas,
enquanto a luz da tarde fere,
inclina as sílabas,
o corpo serve de mastro,
uns ossos pobres
assentes na simples mesa.
A mão treme
da reescrita do seu gasto provérbio.
Já a boca fede a verso,
fechas o caderno,
trazes só a garrafa de virar marés.
Metido com as ruas, atrás de um hálito
de música ou de sonho que faça mais
por esta vulnerável coisa de carne.
Castelos doidos erguidos à pressa
antes que a tarde se acabe.
A escala que aproveitamos dos cafés
que já meio inventamos
ou trazemos lidos,
portos ausentes destas cidades
que sobram de um tempo sem vontade.
E assim ainda por vezes alguém há
que nos olha e desfaz
nas tantas personagens a que servimos
de abrigo.
Toda a fauna dos banidos
e dos desamparados, marcados
pelos vestígios de outros mundos,
os aborígenes no fundo de nós.
Como o sol
acende os ombros deste aguarelista alcoólico,
como depois ele serve a luz na sua cópia
de pássaros e de aromas,
mexendo os lábios
como se estivesse a ler o passado.
Estamos do lado mais frágil,
fechados com um público
que se fixou na sala
depois do espectáculo
ter há muito terminado.
Sem comentários:
Enviar um comentário