terça-feira, fevereiro 06, 2018

Poemas de Joyce Mansour


Sonho com as tuas mãos silenciosas
Que vogam sobre as ondas
Rugas caprichosas
E que reinam sobre meu corpo sem procurar ser justas
Estremeço e acabo por murchar
Pensando nas lagostas
De antenas ambulantes e ávidas
Que raspam o sémen dos barcos adormecidos
Para estendê-lo tão-logo sobre as cristas do horizonte
As cristas espreguiçando polvilhadas de peixes
Nas quais eu me vou saciando todas as noites
A boca cheia as mãos cobertas
Sonâmbula de mar salgada de lua

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As cegas maquinações das tuas mãos
Sobre os meus seios estremecidos
Os movimentos lentos da tua língua paralisada
Nas minhas orelhas patéticas
A minha beleza íntegra afogada nos teus olhos sem pupilas
A morte no teu ventre devorando-me o sexo
Tudo faz de mim uma estranha donzela

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Chove na carapaça azul da cidade.
Chove e o mar lamenta-se.
Os mortos choram incessantemente sem razão e sem lenço.
Contra um céu viajante recortam-se as árvores
exibindo os seus membros tesos aos anjos e aos pássaros
porque chove e o vento se calou.
Gotas loucas limpas da sujidade
caçam gatos pelas ruas
e o cheiro peganhento do teu nome expande-se
pelas veredas e o asfalto.
Chove meu amor sobre o campo devastado
onde os nossos corpos tombados germinaram
alegremente todo o verão.
Chove ó minha mãezinha e nem tu podes coisa nenhuma
porque o inverno caminha solitário sobre a extensão das praias
e Deus esqueceu-se de fechar a cancela.

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Um velho e a sua velha ocultos debaixo da terra
mão apodrecida com mão putrefacta, confortáveis na sujeira
falam-se sem lábios e entendem-se sem palavras
ouvem o canto lento e grave da terra nutrida
e em seus corações perguntam-se
se algum irão morrer.

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Roubei o pássaro amarelo
que habitava no sexo do diabo.
Ele há-de ensinar-me a seduzir
homens, cervos, anjos de asas aos pares.
Ele levará a minha sede, a minha roupa, as minhas ilusões
Ele irá dormir
mas o meu sono irá pelos telhados
sussurrando, gesticulando, fazendo amor violentamente
com os gatos.

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Moscas sobre a cama
no tecto na tua boca nos teus olhos
encostado a elas com o lençol até ao pescoço
o homem impotente astuto ignorante
Deixa-me a pele
Deixa-me o ventre intacto.

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Quero dormir contigo, a teu lado
nosso cabelo entrelaçado
nossos sexos unidos
com a tua boca na almofada
quero dormir contigo, de costas coladas
sem respiração que nos separe
sem palavras que nos distraiam
sem olhos que nos mintam
sem roupa.
Dormir peito contra peito
tensa e suando
brilhando de mil tremores
consumida pela louca e estática inércia
estendida na tua sombra
martelada pela tua língua
até morrer no dente apodrecido de um coelho
feliz

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O SOL EM CAPRICÓRNIO

Três dias de descanso
E porque não o túmulo
Afogo-me sem a tua boca
Esperando o amanhecer recém-nascido derramar-se
E as longas horas detidas na escadaria
Com o cheiro a gás
Como uma máscara para o rosto aguardo a manhã
Vejo a tua pele brilhar
Na fenda negra da noite
O lento aparecimento da lua
No mar interior do meu sexo
O pó sobre o pó
O martelo sobre o colchão
O sol sobre um tambor de chumbo
Mesmo sorrindo a tua mão golpeia indiferente
Vestida de crueldade inclina-se para o vazio
Dizes não e o objecto mais pequeno o corpo de uma mulher pode abrigar-se
Dobrar-se
Beleza artificial
Perfume sintético no sofá por uma hora
Por que girafas pálidas
Deixei eu Bizâncio
A solidão fede
Uma opala é um quadro oval
Outro ataque de insónia com rigidez articular
Uma vez mais uma adaga vibra na chuva
Diamantes e delírio são os desideratos do amanhã
Suor das praias de tafetá sem abrigo
Loucura da minha fé perdida.

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Vivemos colados ao tecto
Sufocados pelos vapores rançosos que se desprende da vida quotidiana
Vivemos incrustados nas mais baixas profundidades da noite
Nossas peles ressequidas pelo fumo das paixões
Giramos em torno do pólo lúcido da insónia
Sustidos pela angústia separados pelo êxtase
Vivendo a nossa morte na gola da nossa sepultura.

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Silêncio porque a sombra da morte empalidece.
Meu coração nu jaz sobre a cama
Perfurado por uma língua
Que não soube reter
Seu suco.
Despeja as tuas doces orações
Sobre o seu olhar de criança sem infância
E escuta como o silêncio da noite
Paira com as suas asas de fuligem
E as pernas abertas.

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Agrada-te dormir na nossa cama desfeita
Os nossos velhos suores não te incomodam.
Os nossos lençóis manchados por sonhos esquecidos
Os nossos gritos ressoando pelo escuro dos quartos
Tudo isso excita o teu famélico corpo.
Por fim o teu rosto feio ilumina-se
Pois os nossos velhos desejos sãos os teus sonhos de amanhã.

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Quero mostrar-me nua ante os teus olhos melódicos.
Quero que me vejas gritar de prazer.
Que os meus membros dobrados por um peso excessivo
Te levem a cometer actos ímpios.
Que os finos cabelos da minha cabeça oferecida
Fiquem presos nas tuas unhas curvadas de furor.
Que te mantenhas de pé cego e crente
Contemplando do alto o meu corpo despetalado.

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Não conheço o inferno
Mas o meu corpo arde desde o meu nascimento
Nenhum demónia aviva o meu ódio
Nenhum sátiro me persegue
Mas o verbo nos meus lábios transforma-se num parasita
E o meu púbis tão sensível à chuva
Imóvel como um molusco reagindo à música
Fica junto ao telefone
E chora
E com o peso todo a minha carcaça exalta-se com o teu velho sexo exposto
E dormente.

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Busquei o teu nome na boca dos moribundos
Beijei-te apesar da minha dentadura postiça
Acariciei-te os seios marcados pela angústia
Cervo listrado com olhos flamejantes
Mulher maldita com pés de jade
Meu sexo persegue-te à sombra de uma onda
Indiferente aos anos que passam
Sem deixar nunca
De gritar.

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Soa o telefone
E o teu sexo é quem atende.
A sua voz de cantor rouco
Sacode o meu tédio
E o ovo duro que é o meu coração
Frita.

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Que falo tocará o sino
No dia que acabarei a dormir debaixo de uma manta de chumbo
Fundida no meu medo
Como a azeitona no seu bote
Fará um frio metálico e sem brilho
Não voltarei a fazer amor numa banheira esmaltada
Não voltarei a fazer amor entre parêntesis
Nem entre os lábios javaneses de um relvado primaveril
Irei exsudar a morte como uma transpiração amorosa
Rodeada acossada pelas visões de outubro
Vou-me envolver na lama.

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Não comam os filhos dos outros
Pois a sua carne apodreceria nas vossas bocas bem providas
Não comam as flores encarnadas do verão
Pois a sua seiva é o sangue de crianças crucificadas
Não comam o pão negro dos pobres
Pois este foi fecundado pelas suas lágrimas ácidas
E afundaria raízes nos vossos corpos recostados
Não comam para que os vossos corpos possam murchar e morrer
Para criar sobre a terra em resultado deste duelo
O outono

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Ilhas de doenças
Com leprosos como papagaios
Mar de silêncio gelado pelo relógio a matraquear a velhice
Gritos de uma jovem cadela mutilada
O hospital vela pelos seus mortos-vivos que não chegaram a ver luz


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