quinta-feira, fevereiro 08, 2018


A raiz desta ausência toda, a fonte, por assim dizer, de tudo quanto falta, às vezes é mais fácil explicar com a humilhação de todo aquele que chegou aí e aguarda, vê a esperança que trazia ser sovada até ficar por um fio, o que tem envenenado a época, deram com Ele, uns séculos já passados sobre a certidão do óbito, o corpo largado de borco, numa região pantanosa, tomado de silvas, insectos gordíssimos, grandões, picando e brilhando, lá estava o fabuloso cadáver já avançado no estado de decomposição, mas produzindo ainda um certo tremor na paisagem, como se ela mesma tivesse dificuldade em engolir. E foi um miúdo, seis anos, com uma ligação fraca mas teimosa à net quem, desde o Paquistão, varando terrenos através do Google Maps, foi dar com aquela sinuosa saliência, e o baile selvagem armado ao seu redor. Fino como só eles, o puto tomou as precauções, e reclamou o tesouro, tirou as coordenadas precisas, rapou o cabelo, montou uma campanha, com boné dos Phillies, e fez-se passar por um puto americano, montou uma campanha, pedindo donativos, era um rim, uma leucemia, sei lá, editou um vídeo com gente chorando, montagem dos atentados, coisa e tal, pôs até uma música discreta, estendendo a mão, e sacou o suficiente para comprar o tal terreno, junto à problemática fronteira com a Índia, só confiou aos pais o achado quando tinha a coisa já bem encaminhada, e foi então garantir-se de que não havia sido tudo uma miragem internáutica. Quando o mundo soube, como era demasiado o afã de todos, um braço-de-ferro entre aranhas começou, e foi preciso vencer as injunções, providências, já tinha doze anos quando se saiu do outro lado da montanha jurídica que lhe meteram no caminho, nisto sempre enxotando as milionárias propostas das farmacêuticas, doidas por espiolharem os restos (afinal) mortais do Grandioso, e houve também, pelo meio, as associações de menores querendo tirá-lo dos pais, os membros mais velhos da comunidade querendo dar conselhos, e a ganância da família, que entretanto se tinha estendido pelo menos para o dobro. Em volta da propriedade havia uma sucessão de fitas, como na cena de um crime, e os terrenos em volta tinham sido hiperloteados, vendidos por fortunas, condomínios de gente revezando para deitar uma vista da janela, os satélites chocando lá em cima, o governo paquistanês, proibiu os drones num raio de quilómetros, enquanto isto a comunidade científica, os diversos ramos académicos trepavam uns pelos outros numa histeria insuportável, eram as questões éticas, os desafios morais da descoberta, as implicações para o mundo religioso, em polvorosa, os receios quanto a instauração de uma segunda e lutuosa Jerusalém, as intifadas ao puto, seitas nascidas em torno de ameaças de morte, o anti-Cristo, anti-aquela-coisada-toda, e o miúdo, Misbah (perdoem, tinha-me esquecido de dizer o nome), não dava entrevistas, embora, de quando em vez, ainda respondesse a alguns emails. O que todos queriam saber era o que faria quando finalmente pudesse reclamar o prémio. Ninguém nunca parecia satisfeito com a resposta, a insistência dele em que não tinha grandes planos, que tudo partia do desejo de chegar mais perto, mas que, além disso, queria dar-Lhe um enterro digno, e, por cima, só imaginava um jardim no qual, com todo aquele brilho, desse para ler de noite.

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