quarta-feira, junho 15, 2016


Há uma tendência daquilo que se apresenta como pós-modernismo que é importante indagar de perto: trata-se da adaptação de grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objectos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado. Essa adaptação vem negar a anti-institucionalidade (que não é apenas característica do modernismo, mas daquilo que, na sequência de Baudelaire, se designa como modernidade literária) em nome da acessibilidade da literatura, e de outros tipos de discurso, ao grande público, o que corresponde à negação máxima de qualquer dimensão inconformista. Aquilo a que se chama “grande público” só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança, e por conseguinte pelo que há de mais anti-artístico, a negação do movimento. Aquilo que se destina ao grande público é a espectacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal - a domesticação. Quem colabora nesta desvitalização da literatura fá-lo em proveito de uma posição de poder pessoal e de grupo que vai contra a memória e a dignidade daqueles que não usaram, e não usam, a literatura, aqueles que a retiraram, retiram, ao capo de poder, que é sempre o da fixação. A anti-experimentalidade declarada e a revalorização da noção de autor são dois sintomas de um processo reactivo que procura na pré-modernidade uma legitimação para o sacrifício do desejo às mãos do poder. Em muitos aspectos, o que é hoje uma vulgata pós-modernista repete o horror ao vazio -aquilo que vai contra a homogeneidade do ideal sem anular a universalização -, em nome das distinções marcadas no interior de um universal estável. 

- Silvina Rodrigues Lopes 
(in Literatura, Defesa do Atrito) 

2 comentários:

xilre disse...

«trata-se da adaptação de grande parte daqueles que se apresentam como escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, o que significa que não produzem senão simples objectos de consumo, ao nível de qualquer outro artigo de supermercado

E que dizer de Camilo (apenas para dar um exemplo), que vendia as suas obras adaptando-se -- freneticamente-- às condições institucionais dominantes e ao mercado?

E porque se deverá aplicar um critério à literatura e outro à música (por exemplo)?

Será que se deve apenas ouvir Ligeti, Gubaidulina e Tavener, para aplicar aos compositores os mesmos padrões que se esperam dos escritores (e dos leitores)?

Será que os melómanos com ouvido educado olham com a mesma sobranceria aqueles que ouvem, sei lá, Vanessa Paradis?

Diogo Vaz Pinto disse...

Creio que exemplos como o de Camilo, ou até Shakespeare -já que estamos lançados-, superam largamente o quadro mercantil, triunfando sobre ele e num mesmo passo subvertendo-o. Alcançam sucesso junto do "grande público" ao mesmo tempo que vencem as reservas do outro, pela forma como realizam espectacularmente as suas ambições artísticas. É um compromisso entre sedução e conflito. Obras que deslumbram sem abdicar de um sentido inconformista, e que por isso mesmo educam o gosto, formam públicos. Mas tratam-se de génios, que sempre transvasam aquilo que são as operações tendenciosas. Referir excepções é sempre uma forma de tentar furar o saco onde se recolhem as pedras que fixam os caminhos mais percorridos.