quinta-feira, setembro 28, 2023


Há outro género de amantes
entre flor e fulgor, lançam o corpo como cartas
marcadas, jogam a dinheiro,
pois há sempre quem pague o gosto adocicado
da carne humana nas diferentes luas,
os que o perderam, que não são já capazes
desse gozo e integridade
a luz que vem da reserva íntima
quando o cansaço se torna um perfume,
depois de verem estreitar-se os céus
sem se levantarem da cama, olhe
se lhe apetecer, entre se quiser
mas feche a porta, por favor 
o frio nem é tão mau mas o ruído 
dormimos junto à estação contando
os comboios que se vão ligando
neste sonho crucial,
temos um horário para os nossos ecos
e o pó ébrio que se levanta transpondo
o pretérito perfeito,
nalguns gestos repetimos a vida
daqueles que uma e outra vez são vencidos 
apesar das histórias que se contam mais
tarde, por defenderem as coisas sagradas
e alimentam o terror tão belos como vão 
levados à corda
e como dos seus corpos suspensos 
nasce depois esse silêncio admirável 
que o comércio na manhã seguinte ignora 
mesmo a noite parece um acontecimento longínquo
quase impronunciável,
só quem aguenta esses pontos que absorvem numa hora
uma vida inteira as infinitas
correspondências o peso da luz somada
se deixa ficar, 
atravessados no ferido som de um raro
encanto
os traficantes do eterno condenam-se à penúria,
mas quando morrem levam o mundo,
sem se denunciarem, por fios enferrujados
e soa enfim essa beleza entre os que escutam
mas são incapazes de dizer sobre isso
uma palavra que seja


segunda-feira, setembro 25, 2023


Os deuses morrem à nossa volta, nem se despedem,
saem desfeitos e tudo o que tocaram
assume um ar perdido, a memória desagrega-se
mas ficam certas visões, a paisagem desarrumada
vamos pisando a luz vidrada e soam
notas espantosas, o chão respira
com os nossos passos, com o gozo
de um certo descuido, agora já podemos
romper tudo, provocar a vida caminhando
por essa tempestade de sugestões 
nem um sussurro nos escapa e há sempre
aquele fragmento que nos rasga a carne
o vento esbarra nalguma torre cantante
e da boca de quem dorme ainda ao nosso lado
ao amanhecer escutas uma frase prodigiosa
e esse rapto esse momento de glória diz-nos
como o maior talento é a confiança em tudo
deixar-se arrastar pela corrente e sobretudo
se é forte, por mais brusca que seja,
cair sob o efeito dessa beleza absurda
da volta que te dá, como te revira,
tudo aquilo que se ouve e nos sacode
e nos foge, sendo óbvio que nenhum assombro
neste mundo seria feito para durar, mas o mundo
segura o fôlego, cada pensamento ou gesto
corta o anterior como uma lâmina e
é na cabeça que se dão os maiores abalos, 
passam por nós as feras como sombras
no espelho, e na sua pelagem escura
a cor das estrelas vai deixando reflexos,
então sentimos como um tremor no sangue
essa alegre desordem dentro de nós, 
e acata por isso o conselho desse pintor
que embriagava o próprio grito
e vinha por aí depois do trabalho 
com aquela largueza e os excessos
de abrir e desemperrar o espaço nas telas.
A técnica cheira primeiro a suor e logo
vem até nós o perfume das bestas reunidas
do outro lado da fronteira,
pois assim pergunta-te quem quis
mexer com os elementos,
comer dessas uvas sem semente,
feitas de espuma do mar,
quem se atreve a manter o curso
quando a ressaca toma conta dos nervos,
e um custo impossível ameaça cair sobre nós,
quem se recusa a voltar para os navios
enterrando-se mais fundo no terror virgem
do mundo, como o pobre do velho,
Homero, cego e talvez por isso tão confiante,
cada passo dado sobre um possível abismo,
treinando o ouvido, apurando-o
nesse murmúrio de vozes tão antigas
como os grandes cursos de água 
parecendo deter o balanço firme e o ritmo
capazes de descoser o fio entre a vida e a morte,
andar de uma para a outra, encher-se
de sentenças, noções bravias, tomar o pulso
do que só pode ser meio murmurado e
imperfeitamente ouvido, mover-se por aí 
como um deus no seu último dia,
passando a mão por entre as vinhas
que crescem em seu louvor, mordendo
os bagos cheios com que alimentou
leopardos e outros felinos que tanto amou, 
colhendo inspiração para a derradeira praga,
até dar-se conta de que o pior
seria recusar-lhes o hálito e as coisas que diz
nesse seu cuidado de as entregar
a uma densa e estranha espécie de música.


sexta-feira, setembro 22, 2023

Os alarves do lirismo

 

Não parece haver modo de se chegar a vias de facto por aqui. E, no entanto, não seria melhor se tomar partido por alguma causa, algum dos lados numa contenda, comportasse algum nível de sacrifício, certo grau de moléstia, e que nos deixasse marcas mais ou menos profundas, encorajando-nos a pesar bem cada frase antes de desferir o seu golpe fosse em que sentido fosse? De resto, o agressor sabe que, mais tarde ou mais cedo, o agredido será ele, e que qualquer palavra que pronuncie poderá ser invocada contra si. Mas esse deveria ser precisamente o risco que mais nos incita. Produzir ecos capazes de se autonomizarem e de, mais tarde, se voltarem contra nós. Mais até do que uma vontade de se mostrar invulnerável, há essa noção de que o perigo maior é dar por si engavetado, ou proposto a essa circulação dos textos que se limitam a executar disposições testamentárias legando certos aspectos estilísticos e temáticos à geração seguinte, mas que, no fundo, não aquecem nem arrefecem. Mais do que qualquer outro desses propósitos referidos pela maioria dos escritores, o desejo de ser infame é algo que se mostra hoje mais necessário do que nunca, até para fazer ver aos demais a ingenuidade de quem se abalança nestas lides presumindo que se trata de uma ocupação da qual se pode entrar e sair incólume. O desastre maior da nossa época é essa presunção da inconsequência das coisas que se dizem ou escrevem. É natural que nos provoque irritação a atitude leviana com que tantos se propõem publicar sem anteciparem como isso significa estender um convite para um embate decisivo. Bataille deixou claro que “um homem difere de um animal no facto de certas sensações o ferirem e o liquidarem no mais íntimo”, mas desde então foi-se tornando comum uma compreensão do campo literário como mais outra atracção inócua, turística, onde as grandes obras se organizam como monumentos a serem rodeados nesse afã dos que andam aos magotes e pretendem assumir sobre elas algum título, como se fossem consumíveis, pudessem ser apropriadas e esgotadas, e é assim que, nos nossos dias, essas moles de aspirantes, que se lançam a tudo sem nenhuma consideração pelo nível de exigência que cobra cada disciplina, e sem o menor receio de serem tomados por imbecis, presumem que a poesia pode albergar e estimar os seus delírios, e desde logo chegam a ela pensando que poderão assim evitar todas as dificuldades dessa arte incrivelmente difícil que é a boa prosa ao quebrar a composição em versos às escadinhas. São normalmente certos agentes sindicais interessados em ver aumentar as suas fileiras e também o género de usurários que todos os dias encontram novas formas de engrolar este género de pacóvios quem mais alimenta essas ilusões de que arte pode funcionar como uma agência para os troca-tintas do ego, sendo que qualquer leitor com algum discernimento consegue dar-se conta da superficialidade dessa investida. A este respeito, Ezra Pound deixou um aviso essencial: “Não pense que a arte da poesia é de algum modo mais simples que a arte da música, ou que pensa agradar ao especialista antes de fazer pelo menos tanto esforço na arte do verso como o vulgar professor de piano gasta na arte da música…” E adianta ainda que, se o cientista não espera ser aclamado como um grande cientista até ter descoberto alguma coisa, isso obriga-o a começar por aprender o que já foi descoberto, e só desse ponto poderá partir para o esforço de impor algo de novo. É natural que os do nosso tempo, estes que estão sempre de malas feitas distribuídos pelas paragens à espera de um lugar no autocarro da posteridade, detestem a figura do crítico, aquele que segundo Benjamin encara o seu papel como o de um “estratega do combate literário”. É que o crítico, como este o entende, “não tem nada que ver com o exegeta de épocas passadas”. Não está aí para firmar valores, não é um mero pica numa dessas composições. “A posteridade esquece ou louva”, lembra o ensaísta alemão, já o crítico “julga face a face com o autor". Não tenta interpretar os humores da eternidade. Todos os lugares lhe são presentes, ele está lançado na ventura, e vê-se de algum modo sempre como o desertor de algum passado, sempre cobiçoso de um porvir que ele mesmo admitirá que, se chegasse, logo o desiludiria. São detestáveis estes escritores e poetas dos nossos dias que procuram por todos os meios esquivar-se a um agreste confronto de posições. Podemos citar—lhes todos os autores que dizem que admiram, podemos retirá-los dessas posições ridículas em que os enterram, e mesmo assim fingem que não é nada com eles. No entender de Eduardo Prado Coelho, a categoria que se deveria aplicar a este tipo de pessoas é a da canalha. "Em que sentido? Para designar uma modalidade de seres que substituíram todo o desejo pelo empolamento de si próprios e que vivem numa Realidade acolchoada, alheia a qualquer pressão do Real e revestida de um princípio de morte." Agora vêm aí uns quantos numa dessas edições patrocinadas pelas autarquias como sempre convém, vêm soprar as cem velas sobre esse cadáver que teve a culpa de deixar que fizessem dele quando ainda era vivo um bolo para os repastos ignaros desta gente que da cultura faz sempre algum regime de conveniência, uma gente que não tem consciência nem do tempo nem de nada, organizando-se sempre de modo a nunca ficarem excluídos das delícias orçamentais. Ora, muitos destes aproveitam-se agora do centenário de Eduardo Lourenço para continuar a cortar o bolo agora sobre a campa, e é claro que, em lugar de uma antologia num espírito minimamente fora-da-lei, estendendo uma teia que fosse complexa, agressiva, ou mesmo delicada, de uma audácia tranquilamente grega, limitam-se a vir-nos com outro conluio dessas mesmas aves cuja vida se restringe aos cemitérios. E aqui repetiria as palavras dele, estando certo que farão como ele diz… “Nós criticamo-los mas eles usam uma estratégia que sempre deu resultado, enquanto deu resultado: aparecem, reclamam-se, juntam-se, parecem todos e são só alguns. A coisa literária, aliás, não lhes interessa mesmo mais e nisso são coerentes.” Bem que podiam ler a correspondência dele com Jorge de Sena, mas ainda que o fizessem nunca se deixariam salpicar pelo infrene tom acusatório daquele magro volume, onde o autor de Exorcismos dizia ao outro que não tinha como se contentar com a perspectiva de só ter para convívio um bando de idiotas competentes naquilo que ensinam, pesquisam ou julgam que criam, “mas para os quais a cultura e os seus problemas nada têm de vital, a não ser na medida em que afectem os interessem do seu pão quotidiano”. Enjoados os dois de mediocridade e de mediania gloriosa, se assumiram posturas bem diversas no confronto com este reino desolado que, a par de tudo o que o degrada, tem ainda de suportar esse regime de festa permanente que distingue os que sempre vão envergando solenemente as senhas devidas à cultura como um bando de abutres, não discordavam na substância do diagnóstico. E, assim, o que concluía Eduardo Lourenço sobre este ambiente de sufocação em que nos vemos imersos? “Estamos condenados de geração em geração a passarmos uns aos outros o ‘isto dá vontade de morrer’.” Mas que isto não vos incomode. Vamos lá ver que editor está em condições de ir sacar mais uns cobres e reunir outra dessas mostras de alarves do lirismo. Evidentemente, nenhum deles se sentirá ferido no seu íntimo por este ataque ou por outro qualquer. De resto, se há coisa que vai distinguindo estes do nosso tempo, é precisamente a forma como se comportam como os enxames de gafanhotos da escrita que Benjamin supôs que em breve viriam a encobrir o sol do suposto espírito aos habitantes das grandes cidades. É uma chusma de gente que anda por aí a reclamar-se do título de autores, mas para quem as palavras não têm peso nem sabor, e descem sem memória aos textos, sem drama nem intriga, organizados por esses chefes de fila cuja única lei que respeitam é a simultânea invenção de esquemas e velhacarias para se irem governando enquanto o fedor alastra. E quanto ao crítico, a receita passa sempre por ignorar e desconsiderá-lo, vir levantar suspeitas sobre as suas verdadeiras intenções, descrevê-lo como um canalha, como se isso por si só abalasse a firmeza dos seus argumentos, como se lhe fosse impossível defender realmente uma causa e ser pródigo nos exageros burlescos, como se essas quixotescas e até por vezes aberrantes actividades de polemista, afinando uma arte de injuriar, não fosse hoje a única saída, o género literário por excelência num tempo em que, no geral, todos admitem que, salvo raríssimas excepções (eles próprios e osamigos), vivemos cercados de sacripantas e imbecis, mas isto só enquanto a acusação se mantiver num plano abstracto, sem se tornar punível ao particularizar. Mas é então que fica claro como se sente frágil o nosso regime cultural, apesar de tão poucas serem as vozes que se marimbam no prestígio e escavam as suas trincheiras do lado da infâmia, com a impetuosa e subversiva violência que realmente faz mossa, pois de outro modo, como esclarece Sena, “este ecumenismo todo das várias igrejas não surgiria se elas se sentissem fortes: a unidade delas vem de sentirem a freguesia a fugir”. Ora, nos nossos dias o facto de estarem montados sobre os orçamentos camarários, sobre essas côdeas que ainda são dispensadas aos coitos académicos, diz-nos que a freguesia já desertou inteiramente. E por isso vão triunfando as Margaridas, os Eiras e outros que vão à boleia, e fazem por ingressar no mesmo lote (pun intended), todos esses que podem estender nos seus versos aquele cheiro de sala de aula e de associação de estudantes. Persiste assim essa paradisíaca piolheira, com os seus casamentos entre o céu e o inferno, como “enxertos de sacristia católica, sem nível teológico algum” (Sena). Todos sabem que este regime de folia está perto do fim, que esta ordinarizada comédia que vive de impor os seus valores segundo flutuações acríticas e desonestidades de toda a ordem tem os dias contados. A própria Universidade com esses seus programa abandalhados, com todo o seu bafio, as suas hierarquias degradantes, as práticas endogâmicas, todas essas intrujices que dão conta dos concursos, e que garantem que ali não se promove outra coisa além de uma “sociedade das prostitutas que não fariam vida na rua – como autores” (Sena, uma vez mais), é um sistema que a breve trecho não terá sequer meios para custear toda essa coloquiagem e as edições grotescamente subvencionadas que ninguém se dá ao trabalho de ler. E com este esquema em breve estará posta em causa todo esse modelo de inflação caseira dos talentos que temos espalhados por cada género, e depois vamos rir-nos todos com as aflições dessas “ratazanas académicas” (na justíssima expressão de Eduardo Lourenço) quando não mais lhes forem confiados esses meios para a divulgação de certas obras e autores, e isto quando nunca conseguiram ultrapassar “a glosa banalmente historicista ou apologética, sem alcance espiritual verdadeiro”, de tal modo que temos todo um aparelho burocrático montado sobre a ideia de posteridade que acabará por ruir, deixando muito claro que não fazia falta nenhuma, pois significava apenas que durante demasiado tempo fomos obrigados a “suportar o odor dos coveiros que o acaso de privilégios sem conteúdo transformou em estetas”.


 

quarta-feira, setembro 20, 2023


No final ferido de tudo o que nos suplica 
alguma continuação,
só te resta dilatar a sua sabedora agonia
na ternura progressiva dos teus passos,
a volta em que se cumpre o que és,
entre glaciares, penhascos retorcidos
pedregulhos e ervas daninhas, 
margens sensuais canoras, a sábia indolência
com que uniste as partes dispersas dessa consciência,
o aspecto da água
resistindo a reflectir seja o que for
traz à superfície imagens novas
por meio dessa invenção gradual,
o sal, os dedos demorados num tremor, 
soberbos restos de navios
que atravessaram a morte com sua luz tão frágil,
do mesmo modo as estrelas vincam o espaço
e há flores capazes de conter a noite inteira,
um perfume chega a soar como um concerto 
e podemos então fechar os olhos,
seguir nomes que não os nossos
até quartos onde nunca entrámos,
e ali provamos esse gosto íntimo
que tanto invejámos olhando a vida de longe,
logo chega até nós a convulsa memória
das coisas que nos aguardam,
arrancamos as ervas de tantos volumes,
a nossa letra deixa-se recortar
entre climas diversos
entrelaçada no esqueleto paciente
de homens em quem o sol se pôs,
vemos o trigo que cresce
entre toda a carne
e esse eco que nos fez sentir desterrados.
Para levantar a moral algum de nós
entretém as questões mais absurdas,
geniais, insuportáveis:
E o mar que diria se ressuscitasse?
Sentimos as raízes revolverem o mundo
cá dentro, e agarramo-nos
o melhor que podemos 
sendo certo que nada há de mais próximo
que uma canção, 
ou a sensação de a ver acender um cigarro
nalgum desses fogos
que ateavam os antigos sonhos.
Para me compensar do seu silêncio
talhei um eco perfeito,
uma primavera movendo perseguição
aos detalhes e suaves semelhanças
em que ela se reconhecia,
e passava depois os dias deliciado
convencido de que a ouvia aproximar-se


Esse órgão ventoso da escrita


Que sobras de tudo isto hão-de acabar a compor alguma vitrine num museu? E terá sido sempre tudo tão frívolo como nos parece agora, a partir das selectas literárias e de todas essas funções de uma memória que relata de forma cada vez mais senil qualquer abertura alcançada por meio de um deslumbramento íntimo? Era esse o mapa em que interessava sujar o dedo seguindo um outro caminho. Lançados na presente desilusão, forçam-nos a fazer uma e outra vez estas perguntas aqueles que representam para si mesmos esse logro de uma nobreza que nunca se deixa iludir. Houve algum tempo melhor, algum eixo que tenha feito confluir esses seres remoídos por febres secretas, e que animavam um mito literário difuso, mas exaltante, estando pouco interessados em representar a elegância dos seus juízos, o acordo musical entre as suas ideias, a tal melodia intrínseca ao pensamento, preferindo ser tidos como maus escritores, e actuando mais como delinquentes no ensejo de se vingarem da cruel solenidade deste mundo? Nalgum momento, depois de longos anos de fastio, e contra esse entendimento comum, adquire-se um gosto raro, um anseio por vozes náufragas e resistentes, por seres cujo rastro no papel tem algo de imundo, e que, em lugar de composições equilibradas, parece que vão cuspindo pedaços de um órgão que tenta escapar ao destino. Aos poucos deixamos de ter tolerância para as composições mais educadas destes que pretendem apenas passar com distinção nas provas, e ser acolhidos no acomodado seio dos mestres. Na margem oposta há aqueles que sofrem de uma estranha doença de pele, que aprendem a viver com uma compulsão desastrosa. Há ainda um mito persistente e que nos empurra para o desacato, mesmo se tanta coisa se perde na transmissão, mesmo se não é possível ensinar coisa nenhuma, até porque “as palavras morrem ao trocarem de boca, a sorte gasta-se ao fornecer os dados” (Fondane). E se é doloroso reencontrar-se sempre com o desastre íntimo nesse esforço para atingir a espessura das coisas, um tipo sente-se encontrado ao encarar-se como num reflexo quando dá por algum desses que andam por aí “através do vómito sem fim do incurável, gritando para se ouvir gritar”. O temor da irrelevância encosta tantos a essa relação burocrática que vai desenhando flores nos muros brancos à nossa volta, e mesmo nesses muros que passam rente ao inferno ainda se pode ler as mesmas justificações imbecis, o mesmo intuito decorativo. Mas houve uma idade em que os fins eram o que menos importava, em que a própria ideia de uma literatura só estava connosco se a perseguíssemos, falando e escrevendo interminavelmente, prosseguindo um delírio dias a fio, e pela noite dentro, sem grande probabilidade de alcançar um contágio, mas gratos por haver ainda essa margem para agir o mais condenadamente possível, descobrindo se se tem ou não a capacidade de suportar o descalabro das paixões, e sair demasiadas vezes do outro lado de humilhações absurdas, envolver-se em ferozes discussões onde quer que seja, não havendo nada em jogo além da possibilidade de levar uma hipótese até ao limite do que a imaginação consegue aguentar. Contra os sistemas que defendem a ordem, o progresso, a moralidade, havia essa relação de forças apuradas no campo do desespero, sendo este a única garantia, pois não permite que em seu nome surjam comunidades estáveis nem nenhum desses condomínios cheios de repartições e de órgãos regulamentares e de serviços de inspecção. Na verdade, a literatura deve quase tudo ao despropósito. “Há na insolência uma rapidez de acção, uma orgulhosa espontaneidade que quebra os velhos mecanismos e que desdenha dos esquemas de legitimação, acabando por levar a melhor sobre um inimigo poderoso mas lento”, como disse alguém cujo nome perdi entre os papéis. Nada é mais desolador hoje do que ir à procura de algum café ou livraria onde pelas conversas ainda passe a sensação do mundo, não se dá por nenhum, por nada que não se fique pelas timidezes e avanços calculados de seres redundantes, que nos devolvem todo o assombro esfarelado, e a própria vida sujeita a noções intragáveis, a ponto de sentirmos o sangue a morder o vazio. E, no fim, essa deverá ser a maior das reservas ou até o argumento essencial que devemos opor à ideia do génio, isto na linha do que Benjamin assinalou na hora de impor uma objecção à forma de vida do celibatário: "ele toma as suas refeições sozinho [... e isto quando] só em comunidade se faz jus à comida; ela deve ser partida e repartida para fazer efeito. Sem olhar a quem: antigamente, um mendigo à mesa enriquecia qualquer refeição." Hoje entramos numa livraria como antes entrávamos numa loja de animais, dando por eles amontoados em gaiolas e celas enervantes. Entre eles codifica-se uma forma de expressão desgastada, bisonha, reduzida à parada mínima, e, se nutrem grandes aspirações, curiosamente isso mantém entre eles um pacto que conduz a um cinismo generalizado. Devemos reforçar a enorme diferença que vai entre essas lojas cheias de gaiolas pipilantes e as árvores que crescem para sustentar a diferentes níveis as selvagens filarmónicas de pássaros. Uma acidental ainda que justíssima descrição do nosso meio literário pode ser arrancada dos diários de Eduardo Prado Coelho, sendo que ali esta passagem se limitava a traçar um resumo das relações entre as personagens de um mau filme: "Ninguém é mau, todos são fracos, às vezes indecorosamente cobardes, e no entanto este carrossel libidinal vai rodando segundo uma lógica do vínculo afectivo, do medo da ruptura e do desejo de 'enganar' (mas é apenas uma miragem: ninguém engana ninguém, todos sabem tudo desde o princípio)." Vivemos devastados por essa ilusão de que os outros se deixam enganar, e sobretudo por essa necessidade de se iludirem a si mesmos. Não havia nenhum futuro para isto, e essa era a grande promessa que a literatura nos fazia. A de se ver investido num tempo ditado pela ânsia dos começos e pelo gozo de se furtar a qualquer fim, suspeitando destes por estarem dominados por um elemento de resignação. Era sempre na ânsia de nos lançarmos noutro assalto ao desconhecido, pela sensação de princípio do mundo que este nos transmite. E se hoje vivemos dominados por sucessivos cenários em que o fim toma conta de tudo, se isto faz de nós já seres póstumos, isso diz-nos o quão distantes estamos daquele desejo imenso que levava a que nenhuma palavra estivesse errada, a que nos fosse possível aproveitar fosse o que fosse, soltar o tipo de “soluço irreal da carne” que leva a que a realidade tenha de se reorganizar para se conformar com ele. Por agora, no entanto, ninguém confia nisto, no próprio gesto da escrita, nessa obstinação em encher-se de sentenças, gritar para se ouvir gritar, ouvindo muito mais coisas do que aquelas que se teve intenção de dizer. Porque há um momento em que a frase se parte, a gramática já não aguenta e o sentido extravasa, arrastando com ele a própria consciência das coisas, e isso normalmente vem sempre dos piores sabujos, os que se aproveitam do seu desespero e actuam como estripadores do idioma, deixam o enredo aproveitar-se de cada inflamação e fractura, somam a partir de elementos inesperados, e com as passagens que forem necessárias, mesmo com uma linha ténue, frágil, absorvem no seu contorno todas essas partes do discurso reviradas do avesso. São os seus próprios passageiros, deixam-se levar por noções só meio murmuradas, ouvidas imperfeitamente, assumindo uma espécie de fé nesse elemento selvagem e tão urgente que há no acaso. Cada escritor elabora de fora para dentro esse órgão produtor de ventos. Depois é preciso lutar com todas as forças para que o buraco não feche.



terça-feira, setembro 19, 2023


Estes hábitos esquisitos são já a última
defesa que temos, esta cabeça vazia
onde dou umas braçadas, me afasto
abalando o reflexo da noite
que sou incapaz de ler,
vou-me agarrando como posso a isto
e nem é a noite que faz tanta falta,
mas a sua força,
um ferimento de copo partido e a mão
desfeita de lhe segurar no estribo 
a rede estendida para mares ainda
por nascer, um postal que se faz valer
de tudo o que não ficou por cá 
a admiração de um verão sem história 
com maçãs, os lírios a apodrecerem felizes
numa lata, 
abrimos um livro ansiando que a língua
nos seja novamente estranha
fartos dos que estão sempre à vontade
com o que têm para dizer,
das coisas de que se pode morrer hoje
o pior é esta gente que enfia tudo num eco
um som cada vez mais frio
o tempo é agora o último assombro
o seu mecanismo vasto
meio  desarticulado, gasto-o
em transcrições e revisões do passado,
com o mesmo sangue vou a outros lugares
leio alto a linha na porta do frigorífico:
na poesia reside ainda a faculdade 
de migração da espécie...,
será a coisa mais importante que li em anos
que os nomes são as últimas distâncias
que ainda resistem
não resta assim outro perigo neste mundo
além do ritmo entranhável de uns quartos 
com o seu clima próprio,
a lâmpada que atira a sua luz
até ao extremo da vida
imagens que a ligam e trazem um gosto
e um cheiro mais fresco que a carne


segunda-feira, setembro 18, 2023


Os corpos chegam a ser as histórias
mais difíceis de contar
aquela estatura sem alcance neste mundo,
destroço bailando à superfície
dos territórios cegos a que a memória se prende

despertamos certa manhã
e não nos parecemos já com o nosso tempo
tem-se água presa no ouvido
um rumor que nos tira o equilíbrio 
e num reflexo vislumbramos a carne única
dos dias em que partilhámos a violenta beleza
das conquistas em comum 
vivíamos bêbedos das coisas 
que prometíamos escrever,
mas depois os melhores desapareciam
para regressarem tão mais tarde
com aquele fragrante cansaço
sinal de experiência e decepção 
sustentando as ruas nas próprias vértebras
puxando um fio desde as origens da terra

lembro-me deste e da sua débil figura
como se metido para dentro
aquele silêncio inesgotável que tinha
diante das coisas
e como lhe deixava a tinta sobressaltada
eram as cartas dele o que importava
mais que os nossos poemas nas revistas
cheias desses detalhes saborosíssimos
princípios e fins de contos
naquele dialecto colérico luminoso
mostrava-nos como se repete uma palavra
até esta dar forma a outra vida
voltara com uma fé absurda na amizade
partilhando a geografia de uma sede sigilosa
fazendo da dor uma espécie de pacto 
deixando claro como a amargura
é o oposto da indiferença

fazia chegar às nossas secretárias esse mar
e aquele corpo derivado de tanto dar à costa
à margem de uma ilha prolongada
como um delírio ou uma amante terrível 
pois se não é possível atingir a saciedade
afogar-se não é mais que outra gota
aceitava o seu supremo azar como prova 
da sua inocência 
apontava e deixava as distâncias convencidas
do seu engenho
expondo a raiz dos pássaros, do som
mas era-nos impossível extrair do ar
os ecos que ele enredara noutros horizontes

no fim restava o quarto minúsculo onde se recolhia
aquele talento educado pela solidão
o modo de cortar um fruto como se abre
outra e ainda outra janela 
os dedos queimados as mãos cantando
o fumo comovido a imensa legenda
dos objectos encontrados naquelas viagens 
e depois a duração dessa decisiva idade
que alguns nunca atraiçoam,
a frescura que lhes chega como certas palavras
que havíamos dado como perdidas
e que para eles atingem um rigor imprevisto
com o sopro agudo da ternura.



domingo, setembro 17, 2023

Margarida Vale de Gato. A poeta ventríloqua

 

A impossível solidão do crítico vê-se por essa resposta difusa a cada passo mais brusco que dê ao darmos por ele eternamente de punhos no ar ou esgrimindo mil argumentos diante de um ror de gente que, sob procuração do autor “caluniado”, lhe vem exigir meças, e que restitua as coisas ao modo como estavam antes, o livro sobre o qual ninguém tem nada de relevante a dizer ou a obstar, mas que se presta a um culto esvaziado, a uma admiração enjoativa, que tanto se enche de superlativos para disfarçar a falta de qualquer vertigem. Bem dizia Lêdo Ivo que o que se espera é que seja o livro a gritar depois da caneta, da tinta e da mesa de trabalho, mas que, “geralmente, são a caneta, a tinta e a mesa de trabalho que gritam depois do livro”. Ou então vem a denúncia e a barafustação por interposta pessoa, o ego inflamado colectiviza-se, faz-se um concílio e espera-se que sejam os amigos, coadjuvantes e cúmplices ou até súbditos a rasgar as vestes, tudo para impedir que o autor se entregue a um transe de autocrítica dilacerante. Hoje, todo o autor que se preze, após dar à estampa um novo livro, faz questão de ser visto por aí como um rei Lear, seguido de um séquito de cortesãos e palhaços, recrutados sobretudo entre esses grupúsculos onde se reúnem várias deformidades literárias. E é sobretudo aquela literatura academizante, esterilizadora, aquela que menos pode dar-se ao luxo de abdicar desse regime de consórcio, precisamente pelo receio de se ver posta em causa. Mas que mal teria começar por encarar a própria obra desde o ângulo que lhe fosse menos abonatório? Não terá ela forças para sacudir os juízos mais virulentos que possam recair sobre ela? Não foi precisamente isso o que foi ocorrendo com quase tudo o que hoje temos como obras que conquistam os leitores por lhes serem tão necessárias? E não são essas primeiramente aquelas que revelam a sua inapetência para estas palhaçadas publicitárias, esquivando-se ao ruído e a essas formas de invertebrada adulação. Os livros já são redigidos e entregues em mão pelos autores a esses porteiros de todas as consagrações, e abdicam do confronto essencial que passa por o autor não se desdobrar e andar por aí como um fanático da sua própria obra. Não nos merecem maior admiração aqueles que fazem o que têm a fazer e logo se colocam à margem, e assumem até uma certa desconfiança ou frieza em relação ao que deixaram pelo caminho? Em vez de um deslumbramento consigo mesmos, não são bem mais cativantes os criadores que mantêm uma postura de recusa mesmo quando tudo à sua volta conspira para agraciá-los, fazê-los sucumbir a um efeito de adesão confusa e mole? Perante esses mecanismos, os verdadeiros artistas  provam o seu livre arbítrio e a sua desobediência não acatando os louvores que, por mais benévolos que aparentem ser, ainda assim os rebaixam. E nessa hora em que tantos cedem, é necessária uma convicção absurda, para que se revoltem como quem se salva, recusando essas formas de cativeiro, de tal modo que, no fim, como antecipando a desgraça de todo o monstruoso êxito que lhes estava reservado, Fernando Pessoa, reconhecia: “Ainda bem que isto vai mal, porque isso é a nossa salvação”. Mas para as vedetas dos versos sensaborões que hoje vemos serem mais celebrados por aí, vai tudo muito bem. Parece ser já muito tarde para inventar algo que provoque estranheza e rejeição num primeiro momento, que gere uma verdadeira indisposição das almas, nada disso lhes convém, nada que não seja uma recepção triunfal e unívoca. Se até há umas décadas se esperava que a arte se impusesse de forma arrogante, numa efervescência de diatribes contra a tepidez que caracteriza o regime de abulia cultural, de há uns tempos a esta parte a poesia, como toda a arte, vem-se comportando de uma forma cada vez mais cautelosa e até mesquinha, tudo para causar boa impressão, gozar desse favor imediato de um público que já nem cai de joelhos, mas vive ajoelhado, faltando-lhe o discernimento ou sequer o orgulho para exigir da arte que cumpra a sua função e lhe provoque suores frios, corroendo os seus hábitos e presunções mentais. No actual esquema em que a crítica se tornou algo de absolutamente intolerável, vemos como cada vez mais na arte “todos são função de todos, todos se servem de todos, todos são sempre servos” (Gombrowicz). Margarida Vale de Gato provou a sua alergia a qualquer outra coisa que não fosse uma reacção servil da parte daqueles que ousam ler em voz alta os seus versos e retirar daí algum tipo de ilações ou um juízo que não coincida com esse registo pomposamente cordial, rançoso e adocicado. Num dia manifestava o seu agrado por ser alvo de uma prosazinha encomiástica e obtusa, de uma jovenzinha que se aprestou a vir cumprir a única coisa que se admite hoje dos jovens, que é assumirem uma postura admirativa, submetendo-se à hierarquia e distribuindo as bolachinhas para acompanhar aqueles poemas encharcados de chá. No dia seguinte, já manifestava uma leve irritação quando um crítico vinha assinalar o “artificialismo” de tantos dos seus versos, e, por fim, acabou por descoser-se na sua ficção altiva, primeiro esperando uma reacção em cadeia e movida pela cólera dos seus apaniguados, e depois estendendo a procuração a alguns amigos para virem dar recados, e explicar que este crítico tinha, afinal, uma agenda, e que a ferocidade dos seus argumentos assentavam numa rejeição anterior. Como acontece com qualquer posição que é na sua essência conjuntural e que, portanto, assenta na falsidade, MVG sabe que o seu pequeno trono não resulta senão de um regime miserável e superficial, ardiloso e medíocre, e sabe que o seu livro é incapaz de sacudir as suspeitas sobre ele lançadas. A questão é que todo o verdadeiro poeta prefere ser lido com a maior das suspeitas e superá-las, pois nunca como hoje foi tão necessário estabelecer uma linha de demarcação, uma vez que, como frisou Gombrowicz, já há demasiado tempo que aquilo que está vivo se mistura com a morgue. “É preciso que a vida se sinta vida, que experimente a sua crueldade, nitidez, o seu impacto e que comece a traçar os seus próprios caminhos.” Pelo contrário, MVG vive no terror de ser lida deste modo, receando que se torne claro como grande parte daquilo que atesoura nos seus versinhos não é mais que a expressão de um malabarismo para se furtar a dizer seja o que for, e que precisa desse alexandrinismo pedante, desse barroquismo de adorno para cativar aqueles que já só conseguem relacionar-se com a poesia nesse modo exausto, reagindo ao desconchavo de uma prosódia atordoante, uma sintaxe que faz sacolejar o cérebro para que o leitor se sinta tomado de tonturas e se apresse a chegar ao fim da viagem, com um mal-estar provocado pela trepidação artificial, e isto fornecendo as mesmas glosas engarrafadas de sempre. Porque estes leitores exaustos não sabem já como lidar com a frescura reinventada, e exigem aos versos apenas essas buliçosas construções em segunda mão. A primeira coisa que deveria exigir-se a uma poesia que aparece como nova é que não queira soar como algo poderia ser dito por alguma estátua. Que não se limitasse a recitar, não rugisse a despropósito, não dissesse piadinhas. Por isso é que hoje toda a gente evita a poesia por se ter tornado esse modo inútil de expressão eleito pelas capelinhas, por essas associações de adoração mútua. Assim, por mais que nos venham com estas "maravilhas" em regime pronto-a-vestir, não é de espantar que sempre que eles referem estes nomes fiquemos desiludidos, com a sensação de que não se impôs nos últimos anos uma só individualidade verdadeiramente profunda e autêntica, como além disso estamos reféns destas hierarquias espalhafatosas e que dão dó, precisamente porque não há medidas significativas do valor de uma obra poética poderosa e excepcional. Todas essas considerações ficam-se por conjunturas afectivas, enredos emocionais, mitos obsoletos e noções espúrias quanto ao que rima com a velha afeição pelos ritmos espevitados a que o ouvido se entrega amestrado, sem querer confrontá-los.  “Os poemas a vir são para ti e para mim e não são para a maiorpartedaspessoas – não vale a pena tentar pretender que a maiorpartedaspessoas e nós são a mesma coisa. A maiorpartedaspessoas têm menos em comum connosco do que a raizquadradamenosum”, assinalava e. e. cummings. Mas esta poesia que nos servem já com as indicações próprias de toda a refeição pré-cozinhada, já meio deglutida, explicando que deve ser aquecida no microondas depois de se fazer uns furos na película… Ainda que os versos de MVG se sirvam de todos os subterfúgios para simular a ânsia de uma contínua novidade de dicção e métrica, esta revela-se tão patológica como se se limitasse a exibir um exotismo empalhado e que não cobre qualquer distância nem nos provoca a sensação de sermos assaltados por uma largura de horizontes com alguma consequência na nossa vida íntima ou intelectual. Saímos daqueles poemas tal como entrámos. É uma literatura que se reveste de todos os ademanes, se faz de esquisita, expõe-se num garridismo exasperado, mas, no fim de contas, não compromete nada nem ninguém, não há um só verso que se nos lance à garganta e que a aperte, que nos traga um odor revoltante ou uma impressão mais venenosa, alguma noção menos vaga e mais apontada ao coração da época, como uma estaca que possa dar cabo deste baile de mortos-vivos. É uma literatura de relações herdadas, noções adquiridas, dirigida a todos os paladares, que nem busca aquela tensão insuportável e no limite da rotura que caracterizou as aberturas desses espíritos modernistas que tanto procura exibir e finge homenagear.  À entrada da sua “terra devastada”, Eliot inscreveu a fogo estas palavras de Petrónio: “Porque eu vi com os meus próprios olhos a Sibila suspensa numa gaiola em Cumas, e quando os rapazes lhe perguntavam: ‘Sibila, o que queres tu?’, ela costumava responder: ‘Quero morrer’.” Se a mesma pergunta fosse feita pelos rapazes a Margarida Vale de Gato, estou em crer que responderia: “Um prémio literário vinha a calhar e também compunha o ramalhete, e mais honras oficiais, carinhos públicos e depois umas traduções lá fora, bolsas de apoio à criação e viagens para ir em digressão a baloiçar-me na minha gaiola.”

quinta-feira, setembro 14, 2023


A primeira noção do sagrado
do encanto pelas coisas terrestres veio
e ainda não tínhamos uma idade certa
vivíamos da caça aos detalhes
achando alguma pedra equilibrada num muro
não tínhamos tantos sinais
espalhados pelo corpo
viriam depois as dores aqui além
abrindo um mapa de lugares
que nunca quisemos conhecer,
a miopia a asma as cordas vocais
afectadas, e o ouvido fraco
a memória como destroços flutuando
parecendo apoiar-se na imaginação 
e esses vazios no antigo sabor das coisas
aos poucos vamos imitando o amor
desde os vasos às descrições mais secas
dessas que obrigam a molhar os lábios 
colhemos caroços nas camas
os livros abertos ali deixados
como frutos mordidos comoventes
a perfumar a desordem dos lençóis
fomos atravessando a intimidade
de estranhos, a membrana dos quartos
rezando entre as flores mais distantes
as mãos suspensas
os nossos instrumentos gastos
e a eternidade roncava surda
restava-nos a boca, ler os lábios 
no balcão apátrida de alguns bares
nas zonas mais fundas
mais tensas da noite
onde começou para nós a descrença 
nada antes nem depois mas apenas
esta vida a passar corrigindo
todas as ilusões que tínhamos


terça-feira, setembro 12, 2023


São os hábitos dos outros o que nos acorda
e vês-te desconjuntado com a mão
ainda perdida de ter folheado a noite, 
na boca o gosto de algum corpo que se vai 
fazendo impossível hoje, como o desejo
e que banhos se tomam que música pelo prédio
com a canalização o ferro das camas rangendo
que banhos e que água doce marcando
na parede a leve oscilação de outras marés
ali na calma derrota dos quartos
depois de nos ter aborrecido a batalha
estendes a mão para a janela feita a lápis 
e tocas o fruto persistente apodrecido
agarrado ao ramo como uma lembrança
do mesmo modo que ela tinha o hábito
de pesar nas mãos um pêssego
até este apodrecer, e eu não sei fazer
melhor, junto migalhas,
botões, dentes, ofereço-lhes a trégua
de um sentido, sinto-o no conjunto
tal como os surdos ouvem música
através dos ossos
e entendo o que a morte quer dizer,
não um final rude e absurdo mas aquele
trabalho contínuo, riscando
livrando-se do excesso, impõe-nos a força
da elipse, dando cabo da memória
sem antes nem depois ficam só as partes,
lábios de pedra abertos, nem homens
nem deuses, apenas essa canção
feita dos restos.


sábado, setembro 09, 2023



Vem de lá pondo os pés entre o que cantam
os grilos e vem sem o menor barulho
uma mão acesa antes de lançar 
o cigarro e pôr fogo ao horizonte
despe a camisa e ainda tem o mar
como num verso de que me lembro
antes de riscado, era isso e a predilecção
que havia então por pássaros, e eu hoje
só penso neles quando mais nada
pode ajudar-me, é fácil estragar a vida
por um excesso de adesão às palavras
mas o sagrado é outra coisa.
Anda por aí um som que não se pode reter,
e talvez só a dor que sobra para o silêncio
lhe seja fiel, queremos repetir um pedaço 
e logo nos escapa talvez seja
porque seguimos alguma canção
dentro do esquecimento, 
os dons imprudentes de quem se perde mais
e depois o odiado sabor da irrealidade
que enfim recai sobre nós,
já não sei o que inventar para te chamar
gostamos dos antigos enigmas debaixo
dos mesmos astros, como nos parece
que as coisas gostassem de ficar dispostas
perto da morte, esse gosto de ir daqui
sem levar nada deixando como bilhete
a melodia da nossa ausência.


segunda-feira, agosto 21, 2023


Ainda há quem com isto só queira dar espaço
à pobreza, os olhos vindos de tantos sítios
misturando os detalhes, o cuidado 
das formigas ao carregar o resto de uma estrela,
alucinadas pelo brilho que morre na erva,
dou-te o exemplo também desse rapaz 
esfomeado apreciando a vista
sobre o ombro dela, como gosta de esconder 
parte do rosto, defender-se dos dias
seguindo a linguagem e os gestos
entre a vaga crónica de sonhos e pesadelos,
no quarto dela entregue a um balanço
desarmante, com as edições de bolso
e alguns alperces quase secos, 
a semelhança de certas horas com a paixão,
os nus pintados de forma grosseira,
os mais doces ainda inacabados,
aquele quadro onde o olhar de cada um
sente o prazer de se deitar como o orvalho 
sobre um campo de flores, e depois
a suave radiação das distâncias, algum sinal
de vida onde os caminhos se cruzam,
aquele que beija a fechadura, e o outro
que abana a cabeça até esta lhe cair
e há por fim tanto a aprender com o que não 
acontece, ou não é para nós, essa desolação
de passear pelo museu do impossível
o gozo de introduzir o esquecimento
no mundo, e as palavras como formigas
carregando a doçura que nos resta.


terça-feira, agosto 15, 2023


Com Paul Nizan

Vê este casaco e como se tem direito
nas costas da cadeira, o que cada furo
poderia contar-nos desses que se acharam
no limite dos mapas e não tinham mais 
que a superfície da pele e os órgãos do frio
e do calor, aquele interior húmido e doce
onde foram esmagados os batimentos do coração
isto tudo se ouve e ecoa no quarto
como a vaga impressão de uma música
que se deixou para trás 
tudo o que ainda atrai traças iridescentes
esses ditos de marinheiros que dos ventos
tomaram a entoação profética
e que têm o mar por um mau cavalo,
instável, difícil de lidar,
tratam-no por filho da puta ainda hoje
distribuindo-se já velhos por recantos
enganando a morte, 
retirando dos bolsos sinais, destroços
a exalação de outro mundo ou apenas
os restos da claridade de algum universo desfeito
aquele fio de imagens que se perdem
nuns olhos mortais
um nome aberto, um silêncio antigo
e hostil às nossas impaciências.
Se dermos tempo à memória ela saberá 
desfazer em espuma todos esses infernos da terra 
e colher frutos magníficos junto com a promessa 
de verdadeiras reencarnações,
e ainda um pouco dessa água cinzenta
para se lavar o rosto a cada manhã.
É isto o que nos faz tremer
a sensação na boca de tudo o que não dissemos
desse alcance que fica para lá
de toda a sombra terrestre,
e o inventário das coisas que põem
diante de nós a vida por extenso.
Tudo cobra um preço agora que a luz
começa a ceder, já não nos surgem as vozes 
como dantes, e aquele cigarro no escuro
parece a vida inteira de um sorriso.
Cansado dessas lendas acerca da salvação,
da suposta liberdade de correr os mares,
tatuei uma pequena âncora,
e desfiz-me em argumentos, convenci-me
que prefiro o perfume fresco da fruta
que apodrece logo e ninguém leva a bordo,
que sabe melhor passar a mão pelo reflexo
de um tanque onde as alturas se afogam
a toda essa abundância de horizontes.
Quietos aqui também ligamos
sussurros secretos, saudamos aqueles
com quem mantemos o nosso comércio de cólera,
aos poucos começamos a encher-nos
das estrelas que agigantam a noite.
De tão sós basta que alguém se aproxime
e ao menor gesto trememos
se a boca se aproxima do ouvido
a menor sugestão soa à aproximação
de certas costas,
quando voam na mastreação pássaros singulares
esse canto que nos empurra devagar
até ao limite de nós próprios.
Então vestimos o casaco e deitamo-nos
entre fantasmas capazes de povoar
o fundo dos mares tropicais, partindo enfim
num acesso de febre como um desses barcos de flores
ou as tábuas suportando o corpo que segue
ardendo pela noite fora.


quinta-feira, agosto 03, 2023


Queres falar da última estação que nos resta
de chuvas e solstícios, encher as margens
de medições sobre o desastre que somos,
intrigados com o cadáver do próprio tempo,
e como se rompeu o balanço dos ciclos
entrando depois em detalhes ingénuos 
sobre funções vegetais, as gotas resinosas
das árvores que se diz que choram
que têm sacros poderes terapêuticos,
ou vamos contar mentiras como das outras vezes?
Vamos falar da desilusão que somos,
ou preferes notar que há pássaros
que nunca se resolvem a cantar, 
e que saber esperar já nem é um ofício certo, 
versos de tão curta vida perdem-se
numa "multidude fossilizada
de papéis estranhos", não esperes assim
efeitos alucinatórios deste velho jogo,
talvez oiças o bosque ali a rezar, a razão desfeita
de um país meio selvagem, deslembrado
capturado por sons que ficam no ouvido
tantos anzóis para tão pouco mar
e só talvez na imaginação possamos
mais tarde aprender a diferenciar as coisas 
as "sombras maiores de algum jardim
esquecido", o cheiro da terra e as luzes
um mesmo murmúrio em que se dissolvem
as gerações, não te espante assim
esse fruto que não sabe cair,
que cresce sem gosto ou doçura,
sem se juntar à comoção dos pássaros,
às distâncias imensas ou às histórias do tempo.
Recortarei com as mãos algum contorno
imprevisto, decalcando estas tristes figuras
no rescaldo da nossa mísera epopeia,
estes últimos paroquianos dos cafés,
e nesse horário que vai de sexta a nunca
virei com a força de um hábito
desejando sempre o pior desfecho.
Com tanta matéria de combate ainda
devo morrer a tempo de não me envergonhar
e bem que gostaria, confesso, de me lançar
de bruços ao abismo, devorar para sempre 
esse coração que perfuma de inocência
esse gesto que fazes e o outro e o outro.


terça-feira, agosto 01, 2023


Não pode tudo ser tão belo nem tão
suave, mas fiz este lugar à tua volta
copiei o melhor que sabia as árvores plantas
frutos e pássaros, desenhei sobre o muro a linha
de água alta e definida de tudo quanto 
esperávamos, assim deixamos
que seja a vida a procurar-nos. Cada manhã 
algum de nós levou já as coisas longe demais,
bebeu os copos servidos por provocação
e a sós entre acordes entorpecentes 
sentimos o silêncio alterado, com a flor que 
preferimos, tentando controlar as ideias
fazemos contas, medimos com o olhar
distâncias exaustas relemos papéis listas
escritas à mão riscadas e perdem-se amantes
vícios estupendos noites submergidas,
de uma viagem ou até de alguns anos
mal se aproveita uma frase, a sombra de castigo
numa fotografia em que estamos os dois,
esses quartos de hotel ao sabor de outras eras,
talvez ali, gostamos de dizer apontando o fim
o ponto onde o esquecimento parecia
a única saída, como hoje o mundo antigo
é onde há ainda um baile e um abrigo para nós
a luz resguardada do âmbar à cinza,
essas impressões vivas e a roupa tingida
presa na corda que corre de uma vida a outra,
a trazer e levar sinais, formas, a matéria de que 
são feitos os ecos ou o efeito da expansão
do universo na minha e na tua intimidade.


segunda-feira, julho 31, 2023


O que temos mais próximo tem hoje o gosto
das coisas mais distantes. Do futuro 
sopra o alívio de uma brisa que nos desfaz,
e a morte soa-nos familiar como uma lembrança,
aquele vazio natural dos tempos
em que éramos muitos, indefinidos,
quando vivíamos perdidos nalguma canção
das de três minutos, repetindo-se até ao infinito.
Naqueles dias eu queria sentir o teu cheiro
e ver de perto o que fazias com o dedo
lá em cima de noite a colar como cacos
o brilho de outros corpos.
Talvez leve uns quinhentos anos antes
que alguém descubra a moeda que lançámos
e que foi sendo empurrada até perder
todo o valor e tornar-se enfim um amuleto.
Assim desvíamos navios, ganchos de cabelo, 
olhamos os estendais imaginando a vida
por dentro, todas as camas desfeitas,
na mesa o brilho entornado
das estrelas, imagens copiadas à pressa, 
misturadas com água com sabão e espuma,
e se não há muito que possamos salvar,
se tudo nos parece igualmente perdido,
não deixa de ser doce como se despede a vida
e nós com ela, num baile de náufragos.
As águas fervem e agitam-se,
o excesso de luz torna tudo insuportável,
mas prefiro balançar-me esquecido
a maior parte dos dias, e reter as noites
em que o corpo zarpa, deixa-se ir,
e vêmo-lo depois meio submerso por aí,
parecendo-nos estranho, tão seguro de si,
como se soubesse onde isto tudo nos leva.


sábado, julho 15, 2023


Um prato de fruta no meio desta estação
derrotada parece uma amálgama
de heresia e de lamento
agora que nem da rede que tinhas
para as borboletas consegues desenredar
uma réstia de luz, se ao menos tivesses
estudado Deus as suas intenções,
o detalhe e a singularidade esse travo
que te impelia para o verso seguinte,
se pudesses ter feito outro caminho,
se hoje mal recordas os dias de juventude 
aquela paisagem de tigres enterrados
parece-te impossível pintá-la agora
até pelo estranho e inebriante perfume
das flores, antes da tinta ter perdido
o viço, ou a sombra
a sua estranha entoação, um rumor
ferido, conhecedor das estórias
deste planeta carnívoro.
Melhor é ter vivido o que te importava
alguma coisa rara absurda teres-te já
despedido do que estar vivo
por esse mórbido desejo de ver
o que se seguirá,
a desaparição das coisas, 
o cheiro a despegado, os espasmos
a perda de vigor e a beleza de lado,
a água bebendo imperceptíveis reflexos,
cada som a demorar-se para ganhar o gosto
do que queria dizer até por fim
tudo ficar dito de qualquer maneira